Valorizar o sentido mais profundo da Eucaristia
13 de dezembro de 2019

Valorizar o sentido mais profundo da Eucaristia

  1. Francisco Taborda, sj

 

O entrevistado expõe o significado da eucaristia e da transubstanciação, que, embora tão fundamentais para vida da Igreja, estão cercados de incompreensões e “penduricalhos” que acabam por tirar a atenção do que é mais importante.

“Infelizmente, é muito comum confundir-se missa com show. A missa não é um show, e o padre não é um animador de auditório a modo de Sílvio Santos, Faustão ou Gugu Liberato”, esclarece Pe. Francisco Taborda na entrevista a seguir. Doutor em Teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität (Münster/Westf.), ele é professor na Faculdade de Teologia dos jesuítas em Belo Horizonte – MG. Tem publicado diversos livros e artigos científicos com a temática dos sacramentos, entre eles: Sacramentos, práxis e festa: Para uma teologia latino-americana dos Sacramentos; Nas fontes de vida cristã: Uma teologia do batismo-crisma; Memorial da Páscoa do Senhor. Pela Paulus, publicou seu mais recente livro, A Igreja e seus ministros: Uma teologia do ministério ordenado.

A experiência de anos estudando, lecionando, escrevendo e celebrando a teologia da eucaristia permite a Pe. Taborda sintetizar de maneira muito clara e categórica o sentido da eucaristia e esclarecer com exímia propriedade e lucidez desvios, incompreensões, distorções e criações de penduricalhos em práticas celebrativas atuais, como a transformação da celebração do sacramento em momento de adoração ou em animação de auditório; da comunidade celebrativa em grupo de tietes; a suposição de que receber a comunhão na mão seria “coisa moderninha”, proveniente da pouca valorização do sacramento… Segundo Pe. Taborda, é muito importante que se saiba que a forma como, até o século IX, se recebia a comunhão era na mão, e quem acha que nossas mãos não são dignas de tocar o sacramento do corpo de Cristo precisa saber que em nenhuma parte da Escritura há alguma invectiva contra as mãos, julgando-as perigosas ou indignas, mas há uma página fortíssima da Epístola de São Tiago contra a língua (cf. Tg 3,1-12).

 

O que significa a eucaristia?

A melhor definição de eucaristia é – a meu ver – “memorial da Páscoa do Senhor”. Quando, na última ceia, Jesus instituiu a eucaristia, concluiu as palavras da instituição dizendo: “Fazei isto em meu memorial” (ou “em memória de mim” – o que vem a dar no mesmo). Ora, a última ceia, segundo narram os evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas), foi uma ceia pascal, em que o povo judeu fazia o memorial de sua libertação do Egito, comendo ritualmente um cordeiro imolado, o cordeiro pascal. Cristo foi apresentado por João Batista como o “cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Ele é o verdadeiro Cordeiro pascal. A libertação dos judeus do Egito consistiu na passagem do Mar Vermelho. Passaram da escravidão à liberdade e assim se constituíram como povo, o povo de Deus. Assim também a Páscoa de Jesus consistiu na passagem da morte à vida, aquele que fora crucificado ressuscitou. Quando celebramos a eucaristia, fazemos o memorial dessa Páscoa, ou seja, dessa passagem do Senhor, da morte à vida. “Memorial” não é meramente uma recordação nostálgica; é uma celebração que nos faz participar (não fisicamente, mas sacramentalmente, e assim realmente) do mistério celebrado, ou seja, do mistério pascal de Cristo. Com Cristo passamos da morte à vida e nos constituímos como o Corpo de Cristo que é a Igreja.

 

Por que celebrar Corpus Christi numa data especial após Pentecostes?

A festa de Corpus Christi surgiu numa época em que a maioria dos cristãos já havia perdido essa concepção profunda da eucaristia e a entendia quase unicamente como um rito para fazer Cristo presente no meio de nós, como se do contrário ele estivesse ausente. Com isso, a festa de Corpus Christi se centra na eucaristia como sacramento da presença real de Cristo e deixa em segundo plano (ou mesmo esquece) seu caráter de memorial do mistério pascal. Por isso se julgou insuficiente comemorar a instituição da eucaristia (sacrifício e ceia memorial) na quinta-feira santa, pois lá não aparece em primeiro plano a ideia de presença real. Significa que Corpus Christi é uma “festa de ideia”. Explico: a liturgia comemora, no decorrer do ano litúrgico, a história da salvação, os mistérios da vida de Cristo (e não ideias). As “festas de ideias”, como da Santíssima Trindade, do Santíssimo Nome de Jesus ou de Maria, da Sagrada Família, são introduções tardias no calendário litúrgico, quando já não se compreendia mais a dinâmica histórica da revelação de Deus. Por isso era preciso encontrar uma data, mas essa data não tinha lugar na grande estrutura do ano litúrgico que se baseia na história da salvação. Daí ter-se recorrido a uma data que não estivesse tão claramente marcada pela intervenção de Deus na história humana. Assim recaiu a escolha no que hoje chamamos de “tempo comum” e que antes da reforma litúrgica do Vaticano II se chamava “tempo depois de Pentecostes”.

 

O que é transubstanciação e por que ainda hoje ela causa tantos questionamentos?

Transubstanciação é a mudança de toda a substância do pão e toda a substância do vinho na substância do corpo e do sangue de Jesus. Essa é a definição correta, mas é demasiado técnica. Por si hoje não se consegue mais entender seu significado, já que a própria palavra-chave “substância” tem na atualidade outra significação do que outrora, no século XII, quando essa palavra foi criada, ou no século XVI, quando o Concílio de Trento a considerou sumamente apta para expressar o mistério eucarístico. Hoje, como vivemos influenciados pelas ciências exatas, a palavra “substância” evoca, por exemplo, uma substância química. Ora, uma substância química é uma coisa que tem cheiro, cor, forma, tamanho etc. Pois bem. “Substância” no sentido usado na palavra “transubstanciação” é exatamente o contrário disso. Nesse sentido, “substância” se contrapõe a “acidente”, e tudo aquilo que foi antes mencionado (cheiro, cor, forma, tamanho) são acidentes! E os acidentes são justamente o que não muda na transubstanciação. O pão e o vinho consagrados (seria melhor chamá-los de “eucaristizados”, isto é, sobre os quais foi pronunciada a oração de ação de graças, a eucaristia) continuam a ter o mesmo cheiro, a mesma cor, o mesmo peso, enfim, as mesmas características físico-químicas. Então o que mudou? Mudou a realidade última do pão e do vinho que, embora do ponto de vista físico-químico continuem a ser o que chamamos pão e vinho, do ponto de vista metafísico já não o são; agora são corpo e sangue de Cristo. No momento em que o pão eucaristizado deixa de ser pão (por exemplo, fica bolorento), já não é mais o corpo de Cristo; no momento em que o vinho eucaristizado deixa de ser vinho (por exemplo, azeda), já não é mais o sangue de Cristo.

 

O que seria de nossas igrejas e nossa vida sem a presença da eucaristia? Pode-se dizer que a igreja vive da eucaristia?

Não sei se a pergunta entende pela palavra “igreja” o edifício de tijolos, pedra ou concreto ou se se trata da Igreja viva, ou seja, a Igreja que somos nós, todos os membros do Corpo de Cristo, a Igreja-Corpo. A igreja-edifício é apenas o espaço onde se reúne a Igreja-Corpo. Agora a Igreja-Corpo não pode existir sem eucaristia, pois, se é verdade que a Igreja é que faz a eucaristia, é mais ainda verdade que a eucaristia faz a Igreja. Nós nos constituímos como Igreja pela eucaristia. A finalidade da eucaristia não é fazer Cristo presente, como se, do contrário, não estivesse presente na Igreja; é fazer de nós o Corpo de Cristo. O Concílio, na Constituição sobre a Liturgia, nº 7, diz muito claramente que há vários modos de presença de Cristo na liturgia. Cristo está presente substancialmente nas espécies eucarísticas (ou seja: sob os acidentes do pão e do vinho). Mas está também presente na pessoa do padre que preside, pois a missa não é desse padre ou daquele padre (como é comum ouvir dizer); o verdadeiro celebrante da missa é o próprio Cristo, o padre é apenas seu ministro, seu instrumento visível, e como tal deve “desaparecer” para que Cristo transpareça. Como dizia João Batista: “É preciso que ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30). A Constituição sobre a Liturgia continua lembrando que Cristo está presente na celebração de cada sacramento, pois, como dizia Santo Agostinho, “quer Pedro batize, quer Judas batize, é Cristo quem batiza”. Ou seja: o batismo não vale mais por ter sido administrado pelo primeiro apóstolo, nem vale menos por ter sido administrado pelo traidor, pois eles são meros ministros; o batismo vale porque, seja lá quem for o ministro, é Cristo que batiza. Ora, se é Cristo que batiza, ele está presente quando se celebra o sacramento. E isso que é dito do batismo vale para qualquer outro sacramento. O Concílio ainda fala da presença de Cristo na proclamação da Palavra de Deus, da presença de Cristo na comunidade que celebra sua fé com salmos e hinos, na assembleia reunida em seu nome (cf. Mt 18,20). Mais tarde, Paulo VI, na encíclica Mysterium fidei, retomou esse ensinamento do Concílio e completou-o, lembrando a presença de Cristo quando se exerce a caridade para com o necessitado (cf. Mt 25,40), a presença de Cristo no magistério da Igreja e assim por diante.

 

Como se apresentam os aspectos litúrgicos na eucaristia? O que é incorreto?

Entre as muitas coisas que poderiam ser ditas a esse respeito, quero ressaltar uma que infelizmente é muito comum: confundir-se missa com show. A missa não é um show, e o padre não é um animador de auditório a modo de Sílvio Santos, Faustão ou Gugu Liberato.

Outro ponto: há muitas vezes uma confusão entre participação ativa e “fazer coisas”. O Concílio insiste na participação ativa e consciente dos fiéis, mas a primeira forma de participação é a participação interna, a consonância entre gestos/palavras e o que vai no coração. Como dizia São Bento, “que a mente, o coração concorde com a palavra, com a voz” (mens concordet voci). O Concílio repete muitas vezes que se observem momentos de “silêncio sagrado” na liturgia, justamente para que se assimile interiormente o que se está realizando exteriormente. E o que se vê com frequência é uma barulheira (pense-se na bateria, tão fora de lugar na liturgia), uma balbúrdia que não permite penetrar no sentido do mistério e faz com que se saia da celebração tão vazio como se entrou.

Outro aspecto que gostaria de ressaltar é que o Concílio quis que a liturgia romana voltasse a ter a simplicidade das origens, sem os penduricalhos que lhe haviam sido acrescentados no decorrer dos séculos. Acontece frequentemente que se acrescentem penduricalhos piores que os anteriores, porque tirados da cabeça de pessoas sem formação teológica ou litúrgica mais profunda, e isso torna a missa insuportavelmente longa e banal, sem acrescentar nada que ajude a penetrar o mistério que se celebra.

Ainda mais um aspecto: a missa não é hora de adoração do Santíssimo Sacramento. Portanto, é completamente fora de lugar pôr a hóstia num ostensório e percorrer a Igreja. A missa é o momento de adorarmos o Pai por meio de Cristo na força do Espírito Santo. O que deve estar na mira é o Pai; Cristo é o mediador, no Espírito Santo.

 

O Concílio diz que o sacramento da eucaristia é a síntese e o cume para onde tendem todos os sacramentos. Por quê?

O centro de nossa fé é o mistério pascal de Cristo, sua morte e ressurreição. Ora, a eucaristia é o memorial dessa Páscoa de Cristo, o sacramento que nos faz participar desse momento culminante de toda a história da salvação. Ela é, portanto, a síntese da fé, já que a fé não é só tomar conhecimento de algo que, do contrário, não se saberia (por exemplo, de que Cristo morreu e ressuscitou), mas é tomar parte naquilo que cremos, tornar concreto em nossa vida o mistério da fé (fundamentalmente, a morte e a ressurreição de Cristo).

Todos os sacramentos nos dão participar do mistério pascal de Cristo sob determinado ponto de vista. Por exemplo: pelo sacramento da penitência ou reconciliação participamos do mistério pascal de Cristo enquanto ele operou, de uma vez por todas, a remissão dos pecados. Mas a eucaristia nos dá participar do próprio mistério pascal, enquanto nela se atualiza nossa participação na entrega de Cristo ao Pai, em que consiste o mistério de Cristo. Dito de outra forma: todos os sacramentos têm relação com o fato de que ser cristão é ser membro do Corpo de Cristo. Por exemplo: pelo batismo passamos a ser membros do Corpo de Cristo; pela reconciliação, voltamos a ser membros vivos do Corpo de Cristo, para o qual havíamos morrido pelo pecado. Mas, pela eucaristia, crescemos cada dia como Corpo de Cristo. É como o ser humano: a criança ao nascer já é um corpo humano, mas precisa crescer e, para isso, necessita de alimento, e, se por acaso adoecer, precisa de remédio. O batismo é nosso nascimento; a eucaristia é alimento que nos permite crescer como Corpo de Cristo; a reconciliação é o remédio que nos faz viver de novo, quando morremos pelo pecado.

 

De que forma os cristãos devem receber esse sacramento?

Nesse ponto vale o que São Paulo diz, quando recomenda que cada um se examine antes de receber o corpo e o sangue de Cristo para discernir se está vivendo de acordo com a fé, se está buscando seguir a Cristo em sua vida de cada dia (cf. 1Cor 11,28s).

Mas também se levanta hoje, muitas vezes, a questão da comunhão na mão. Parece que há muita gente pensando que receber a comunhão na mão é coisa moderninha, invenção proveniente da falta de fé na presença real de Cristo na eucaristia. Por isso, é muito importante que se saiba que a forma como, até o século IX, se recebia a comunhão era na mão. São Cirilo de Jerusalém, que viveu no fim do século IV, em suas catequeses mistagógicas, ensina a comungar da seguinte maneira: “Ao te aproximares, não vás com as palmas das mãos rígidas, nem com os dedos separados; mas faze da mão esquerda um trono para a direita, como quem está por receber o Rei, e no côncavo da mão espalmada, recebe o corpo de Cristo, respondendo: Amém”. Esse texto de São Cirilo foi o que convenceu Paulo VI a readmitir o uso da comunhão na mão.

Muitos argumentam que nossas mãos não são dignas de tocar o sacramento do corpo de Cristo. Bem, se as mãos não são dignas, menos digna ainda é a língua. Em nenhuma parte da Escritura há alguma invectiva contra as mãos, julgando-as perigosas ou indignas, mas há uma página fortíssima da Epístola de São Tiago contra a língua (cf. Tg 3,1-12). Ele chega a escrever que a língua “está entre nossos membros contaminando o corpo todo e pondo em chamas a roda da vida, sendo ela mesma inflamada pelo inferno” (v. 6). E continua mais adiante: “A língua, nenhum ser humano consegue domá-la: ela é um mal que não desiste e está cheia de veneno mortífero” (v. 8). Se nossas mãos não são dignas de receber o corpo de Cristo, menos ainda nossa língua! Então não devíamos comungar! Então Jesus não devia ter-nos dado seu corpo como alimento! Se, pois, podemos pôr o pão eucaristizado em nossa língua, com muito mais razão podemos pô-lo em nossa mão.

 

O que pensar da comunhão sob as duas espécies?

A comunhão sob as duas espécies é o mais óbvio que há. Cristo não disse: “Tomem e comam, mas não bebam”; disse: “Tomem e comam; tomem e bebam”. Logo, temos de comer e beber.

 

Qual é o sentido da presença de Cristo na eucaristia?

Cristo está presente na eucaristia sob as espécies de pão e de vinho. Ora, pão e vinho são alimentos. Logo, o sentido da presença de Cristo na eucaristia é que nós nos alimentemos dele. A adoração ao Santíssimo Sacramento não é a finalidade e o sentido primeiro da eucaristia, mas um sentido derivado: já que Cristo está presente, pode-se adorá-lo. Mas Jesus não disse ao instituir a eucaristia: “tomem e contemplem” ou “tomem e adorem”, mas “tomem e comam”, “tomem e bebam”. A exposição do Santíssimo Sacramento para que seja adorado tem a mesma finalidade que, numa padaria, pôr os pães na vitrine: é para despertar o desejo de comer aqueles pães tão apetitosos. Assim também a exposição do Santíssimo é para que desperte em nós o desejo de participarmos da celebração da eucaristia, que é o fundamental; a adoração é secundária como decorrência da presença real e substancial de Cristo sob os acidentes do pão e do vinho. Por isso o Concílio insistiu na celebração, enquanto anteriormente ao Concílio aparentemente se considerava como mais importante a adoração. Em decorrência disso, no imediato pós-Concílio, muito corretamente, decresceu a prática da adoração e bênção do Santíssimo. Posteriormente, algumas pessoas começaram a pensar que essa diminuição dos momentos de adoração significava negação da presença de Cristo no pão eucaristizado e, com isso, veio a insistência na adoração, de forma que muitas paróquias, por falta de formação litúrgica, parecem ter esquecido o Concílio.