Retiro Santo Inácio – Um Homem, Um Santo. Dia 7
4 de julho de 2020

6 – “…Assentou-se um pouco com o rosto para o rio”

(S. Inácio, Aut.30)

Uma vez ia, por devoção, a uma igreja que estava mais de uma milha de Manresa.

Creio que se chama São Paulo, e o caminho vai junto do rio.

Indo assim em suas devoções, assentou-se um pouco com o rosto para o rio, o qual ficava bem em baixo. Estando ali assentado, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento.

Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de espírito, como de fé e letras. Isto, com uma ilustração tão grande que lhe pareciam coisas novas.

Não se podem declarar os pormenores que então compreendeu, senão dizer que recebeu uma intensa claridade no entendimento. (Nisto ficou com o entendimento de tal modo ilustrado, que lhe parecia ser outro homem e ter outro entendimento, diferente do que fora antes)” (S. Inácio, Aut. 30).

Este texto da Autobiografia de S. Inácio nos remete à experiência mais importante de sua vida. Ele que havia buscado o sentido da sua vida nas honras do mundo, e que pouco a pouco foi rompendo com os moldes de uma sociedade que determinava seu destino, encontra-se na solidão de seu caminho, com uma manifestação de Deus impossível de abarcar.

Junto ao rio Cardoner este inquieto caminhante “assentou-se um pouco com o rosto para o rio”.

Para S. Inácio, a experiência da estrada lhe era familiar e cotidiana: era lugar de encontro, escuta, reconhecimento e revelação. No espaço entre a estrada e o rio dá-se a interiorização do caminho do Amor de Deus rumo ao ser humano. Esta interiorização é abertura, é dilatação do coração na fé, que parte sempre de Deus (Fonte do rio da vida) e volta para Deus (rio que mergulha no Mar).

No fundo do seu coração, S. Inácio acolhe, escuta e reconhece o murmúrio da voz de Deus, que, como um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o acompanha da nascente ao mar aberto.

Na música da torrente que se precipita ressoa a alegre certeza: “Eu me tornarei o mar!”.

O rio pode e acaba se tornando o mar. A água menor que se movimenta é atraída em direção à água maior do Oceano. Precipitando-se sempre para a frente, o rio se move através de mil obstáculos, e seu movimento encontra a sua finalidade e o seu repouso quando alcança o mar.

A experiência de S. Inácio à margem do rio Cardoner o conduz à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-o de reconhecer o murmúrio da água viva.

Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: Venha para o Pai” (S. Inácio de Antioquia)

Algo disto é o que todos e cada um vivemos ao percorrer os caminhos deste mundo. Uma e outra vez em nossas vidas, depois de haver buscado em vão por rincões e encruzilhadas o sentido de nossas existências, nos “assentamos um pouco com o rosto voltado para o rio da história”.

Ali deixamos de buscar nosso próprio caminho para deixar que Aquele que é o Caminho, nos busque; ali deixamos de perguntar por nossas inquietudes para deixar que Aquele que é a Verdade, nos inquiete com suas perguntas; ali deixamos de viver para nós mesmos para deixar que Aquele que é a Vida comece a viver em nós, para comunicar uma vida abundante aos demais.

Caminhando por estradas desconhecidas ou sentados às margens de um riacho ruidoso, podemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas”, e, ao mesmo tempo, inexplicavelmente familiares. Em outras palavras, pode acontecer que nos sintamos conduzidos ou atraídos para lugares diferentes, conhecimentos novos, experiências surpreendentes…

Tal como o peregrino basco, iluminado por Deus às margens do rio Cardoner, nós não podemos nos deter para saborear da experiência maravilhosa do amor de Deus manifestado a cada um de nós.

O caminho não se deteve para Inácio e não se detém para nenhum de nós. Ele não obteve ali todas as respostas; poderíamos dizer que foi precisamente uma imensa explosão de perguntas que o fizeram manter-se sempre caminhando e buscando o que mais e melhor podia fazer pelo serviço aos outros.

Segundo a tradição oriental, quanto mais baixo estiver o corpo, mais feliz fica a mente.

O ocidente deseja que as pessoas pensem no céu, e alonguem a cabeça no ar para fazê-las olhar para cima e ver as nuvens. O oriente sabe que a melhor maneira de chegar ao céu é estar solidamente na terra, e por isso convida as pessoas a se agacharem ou se assentarem. A postura cômoda, literalmente na terra, é condição para a paz interior. As pessoas são devolvidas às fontes terrenas.

Ao encontrar-se com a mãe-terra a pessoa é impulsionada para as experiências transcendentais.

Quanto mais proximidade e intimidade com a terra mais profunda é a experiência espiritual.

Na Índia, quando as pessoas se levantam, sua primeira oração é juntar as mãos e pedir perdão à Mãe Terra por pisá-la. Que não haja ofensa no contato necessário, mas intimidade.

Em casa, as pessoas sempre andam descalças. O pé nú acaricia a terra que pisa, agradecendo o apoio e mostrando sua confiança. Cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante. Dá força e inspiração sentir-se junto à terra, palpar sua firmeza, medir sua imensidade.

É o altar cósmico sobre o qual celebra-se diariamente a liturgia da vida.

Quando o amor nos habita tudo se torna sagrado. Não há “Terra Santa”, há uma maneira santa de caminhar sobre a terra. É a nossa maneira de caminhar sobre a terra que a torna sagrada.

É nossa maneira de habitar nossa casa que faz dela um templo.

A terra não só dá segurança e sustenta o ser humano, mas também enche de alegria o seu coração, porque o seu contato é mais do que um contato físico – é uma presença viva.

Quando o ser humano não percebe o seu parentesco com a terra, vive numa casa-prisão cujas paredes lhe impedem uma comunhão cósmica.

Quando sente a presença de Deus em todas as coisas, seu coração se emancipa e se dilata, sua mente se abre, seus horizontes se ampliam… O universo passa a ser o seu grande lar e o “lar é lá onde está o coração”. E o seu primeiro lar, a terra, é onde ele encontra o coração de Deus. Em tudo pode-se vislumbrar um lampejo da divindade.

Acreditar nisso desperta em nossos corações uma grande consolação e uma enorme identificação com tudo o que vive e cresce.

Abaixo dos vulcões, ao lado das montanhas cobertas de neve, entre os enormes lagos, a floresta chilena cheirosa, silenciosa, emaranhada… Eu me originei desta paisagem, desta lama, deste silêncio, para vagar, para sair cantando pelo mundo” (Pablo Neruda).

Minha profissão é estar sempre alerta para encontrar Deus na natureza, conhecer os lugares onde Deus está à espreita, assistir a todos os oratórios e todas as óperas… na natureza” (John Muir).

Textos bíblicos: Atos 16,13-16; Jo 7,37-39; Ez 47,1-12.

Na oração: Acolher a Palavra, para quem tiver a coragem de assentar-se ao longo do “rio”, significa aceitar a abertura do coração e deixar desabrochar a vida nova que vem de Deus.

Na oração, mergulhamos no “rio” que corre, descemos às águas do amor do Pai, deixamo-nos molhar pelas palavras do Filho e recebemos a força e a luz do Espírito.