Retiro com Arte
23 de junho de 2019

A beleza de Deus e suas manifestações

 

Este mundo no qual vivemos tem necessidade da beleza para não cair no desespero… A beleza, como a verdade, põe alegria no coração dos homens e é um fruto precioso que resiste à passagem do tempo” (Mensagem dos Bispos aos artistas, no Vat. II)

Contemplar a beleza é contemplar a face do Transcendente.

Todos os mitos da Criação são mitos da beleza do mundo criado e da arte do Criador. E o ser humano participa do ato divino, resgatando o belo e o luminoso em cada coisa, como no dia da Criação.

Segundo Platão, a beleza é a expressão do Bem, isto é, a harmonia que fraterniza os homens ao longo dos caminhos da vida e o esplendor da Verdade, ou seja, raio de luz para o peregrino inquieto, tentado pelo absurdo. O Bem e a Verdade se expressam como beleza.

A beleza é o reflexo e participação da Beleza eterna de Deus.

Nesta perspectiva o Deus transcendente em sua Beleza se faz imanente, expressando-se na irradiação luminosa da criação. Deus-Amor esbanja sua fecundidade numa encantadora gratuidade refletida na multiplicidade incontável de seres, nas alturas do firmamento, nos recantos desta terra e dos oceanos.

Além das necessidades vitais básicas o nosso “eu profundo” precisa de beleza. E a beleza o mundo a serve por atacado. Está em todos os lugares, na lua, na rua, nas estações, no mar, no ar, nos rios, nos jardins, nos rostos, nas vozes, nos gestos…

O mundo está carregado de Deus em seu esplendor.

Como no último dia da Criação, temos de concordar com o Criador: olhando para o que tinha sido feito “viu que tudo era muito bom” (Gen 1,31). A beleza é a base da obra criada.

“Como são agradáveis todas as suas obras!… uma excede a outra em beleza: ninguém se cansa de contemplar sua formosura” (Eclo 42,22-25).

Quando a beleza nos afeta, então nós queremos fazê-la nossa para sempre. Infelizmente tudo é efêmero, a experiência estética é passageira.

“Porque a beleza é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que desejaríamos prolongar pelo tempo afora” (Camus).

E, no entanto, a beleza pode ser um símbolo que suscita a esperança. Como todos os símbolos, ela aponta para além de si mesma e revela níveis invisíveis da realidade.

“Procurem as digitais de Deus” (João Paulo II aos astrônomos).

“A beleza salvará o mundo” (Dostoiewsky).

A beleza nos leva por caminhos de renascimento. A arte, a beleza abrem as portas fechadas do mundo, fazem entrar a luz transcendente nas trevas da rotina.

“Espero que um dia a beleza venha iluminar os sórdidos muros de minha prisão cotidiana”. (Eugenio Ionesco)

A transformação do coração humano tem muito que ver com a sensibilidade autêntica para a beleza. Só as revoluções com beleza tem chances de resultarem vitoriosas.

“É a beleza que engravida o desejo. São os sonhos de beleza que tem poder de transformar indivíduos isolados num povo” (Rubem Alves).

“Tranquilo, fechei os olhos. Um prazer sossegado, misterioso, tomou posse de mim – como se todo esse milagre verde ao meu redor fosse o paraíso mesmo, como se todo o frescor, o ar e o sereno êxtase que estava sentindo fosse Deus.

Deus muda sua aparência a cada segundo. Bendito o homem que pode reconhecê-lo em todos os seus disfarces. Num momento é um copo de água fresca, instantes depois é teu filho, sentado sobre teus joelhos ou uma mulher encantadora ou quiçá não é mais que um passeio matutino. Pouco a pouco, tudo o que me rodeia, sem mudar sua forma, se converte em um sonho.

Eu era feliz. A terra e o paraíso eram uma mesma coisa. A vida parecia-se a mim como uma flor do campo, com uma grande gota de néctar em seu centro. E minh’alma, uma abelha selvagem disposta a beber” ( Nikos Kazantzakis em “Zorba, o grego”).

Por que nos servimos tão pouco da beleza para expressar a experiência de Deus?

Que relação existe entre a experiência estética e a experiência de fé cristã?

No princípio era a beleza…

“Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gen 1,31).

A página inicial da Bíblia apresenta-nos Deus, construtor genial de beleza, maravilhado e admirado com a obra nascida do seu gênio artístico. Mas Deus não quis contemplar a beleza da Criação sozinho.

No 6º dia criou o ser humano, o fruto mais nobre do seu projeto, a quem submeteu a natureza inteira como um campo imenso onde exprimir a sua capacidade inventiva e criativa.

De fato, depois de ter criado o homem e a mulher “à sua imagem”, Deus confiou-lhes a tarefa de serem artífices. Com amorosa condescendência, o Artista divino transmite uma centelha da sua sabedoria transcendente ao ser humano, chamando-o a partilhar do seu poder criador.

Na “criação artística”, mais do que em qualquer outra atividade, o ser humano revela-se como “imagem de Deus” e realiza aquela tarefa, em primeiro lugar plasmando a “matéria” estupenda da sua humanidade e depois exercendo um domínio criativo sobre o universo que o circunda.

Segundo a expressão do Gênesis, todo ser humano recebeu a tarefa de ser artífice da própria vida: de certa forma, deve fazer dela uma obra de arte, uma obra-prima. Todos somos artistas.

Ao lançar um olhar contemplativo sobre a Criação e ver que tudo o que tinha criado era bom, Deus viu também que tudo era belo. A beleza é a expressão visível do bem. Vivendo e agindo é que o ser humano estabelece a sua relação com o ser, a verdade e o bem.

O artista é aquele que vive numa relação peculiar com a beleza. Pode-se dizer, com profunda verdade, que a beleza é a vocação a que o Criador o chamou com o dom do talento artístico.

“A beleza é para dar entusiasmo ao trabalho, o trabalho para ressurgir” (Cyprian Norwid).

Na busca ansiosa da beleza, o ser humano pode descobrir a profunda dimensão espiritual e religiosa que sempre caracterizou a arte nas suas formas expressivas mais nobres.

Assim, pois, a beleza salvará o mundo, como soube interpretar S. Agostinho, um enamorado do belo: “Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Te amei”.

  1. Inácio, também um homem sensível à beleza, durante os Exercícios Espirituais, convidava os exercitantes a contemplar o Evangelho como os artistas, e os ensinava a aplicar os sentidos, um após outro, nos acontecimentos da vida de Jesus Cristo.

A C. Geral XXXI reconhecia a especial importância da arte ao “oferecer um caminho particular para chegar ao coração” (n. 554) e falou da importância das artes “no trabalho apostólico para estender a mensagem de Cristo (n. 558).

Com efeito, toda a intuição artística autêntica ultrapassa o que os sentidos captam e, penetrando na realidade, se esforça por interpretar o seu mistério escondido. Ela brota das profundidades da alma humana, lá onde a aspiração de dar um sentido à própria vida se une à percepção fugaz da beleza e da unidade misteriosa das coisas.

Cada forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminho de acesso à realidade mais profunda do ser humano e do mundo. E, como tal, constitui um meio muito válido de aproximação ao horizonte da fé.

“Contemplava nas coisas belas o Belíssimo e, seguindo o rasto impresso nas criaturas buscava por todo o lado o Dileto” (S. Boaventura).