Retiro “A arte de cuidar com resiliência”. Dia 5
4 de novembro de 2020

3 – Cuidado: acolhida amorosa de si mesmo

“A compaixão é aquilo que nos torna verdadeiramente humanos;
temos compaixão pelos fracos: nós mesmos”
(Anatole France)

A nossa cultura é controlada pela ideia de que o ser humano pode e deve ser “perfeito”.
Anos e anos a ideia de “perfeição” vêm modelando nossa mente e petrificando nosso coração.
O conceito de perfeição está presente ativamente em todas as dimensões da vida, sob diversas formas: a sede insaciável de possuir e de fazer, a ilusão do “nascido para vencer”, a mística do sucesso e da eficiência, o “ser o 1º” que respiramos por todos os povos, o medo do fracasso, a busca da auto-glorificação, a ânsia de poder…
Desde a nossa infância somos impelidos a procurar a perfeição.
Esse conceito assumiu um valor central na compreensão e na orientação da nossa vida. Mesmo na espiritualidade reforça-se a idéia de que tudo aquilo que se endereça a Deus deve ser perfeito.
E a santidade passou a ser considerada como sinônimo de perfeição.
Nesta ótica, aquilo que é “humano” passou a representar decadência, fragilidade, limite…
Para ser “perfeito” tornava-se necessário sair da “condição humana”: sufocar o humano, dominar e controlar a condição humana… e buscar viver no nível “sobre-humano”.
Além disso, o homem começou a perder a “visão humana” das coisas, da natureza, dos outros… afastando-se totalmente das “outras coisas criadas” (EE. 23).
No entanto, a convivência no recinto da perfeição é inumana.
A expressão “atingir a perfeição” é uma imprudência. A procura da perfeição não ajuda a pessoa a viver, a amar, a sonhar, a sorrir, a perdoar, a ser feliz…
Nas suas formas mais graves, a busca da perfeição é estressante, conduz ao desprezo de si mesmo, torna insuportável a relação com os outros e pode conduzir à auto-mutilação.
Isso não é vida. Queremos residir num lugar onde a compaixão e o cuidado possam abraçar nossas fragilidades e limites. Devemos passar de um humanismo da “auto-exaltação” para um humanismo da “auto-acolhida”.
“Acolher-se” significa compreender que a coisa mais importante não é o erro, o fracasso, a fragilidade…, mas sou eu mesmo. Esta experiência é um ingrediente da condição humana. É a matéria prima da vida.
A “acolhida de si” me afirma como sou, aqui e agora. Devo cuidar de mim mesmo, dado que sou um valor pelo fato mesmo de existir. O fato de me aceitar em profundidade se revela como um gesto de coerência, de ternura para comigo mesmo.
Parece que o ser humano não tem prazer em auto-aceitar-se. Suporta mal o seu ser. Não se ama e nem se entusiasma a ponto de aceitar a fundo a bondade do próprio ser. O ser humano tende a desconhecer a humanidade dentro de si a ponto de fazer da culpa a medida da vida.
– É a “consciência do limite”, fundada na auto-compaixão, que nos ensina a suportar o golpe, a subir de novo a ladeira, a escolher a vida, a confiança, a transformar o erro em ocasião para sermos mais humanos. Ela sabe quando temos a necessidade de ter cuidado de nós: nos momentos duros, nos fracassos, nas decepções…
– A “consciência do limite” alimenta a lealdade para nós mesmos. A raiva, o ressentimento, a angústia o desprezo pelo erro cometido, o sentimento de culpa, a auto-imagem negativa, o medo do castigo… não são mais que uma falta de lealdade para com o nosso ser.
– A “consciência do limite” substitui a disposição de castigar pela disposição de perdoar.
Ela realiza uma conversão que faz do perdão a medida definitiva da vida. “Perdoar é cuidar-se”.
– Na “consciência do limite” aprendemos a recorrer à compaixão em vez de recorrer ao auto-desprezo.

É assumir uma atitude de verdadeira atenção e cuidado de nós mesmos.
O tecido da vida cotidiana oferece muitas ocasiões para esta prática de bondade consigo mesmo.
Uma vida sem erros é estressante, martirizante, não tem sentido, não tem nada de superior, é uma vida eternamente complicada.
Ao oferecer-me um gesto de perdão em vez de um gesto de repulsão ou de condenação torno-me mais humano. Demonstro-me humano com quem mais precisa de humanidade: eu mesmo.
É o momento da compaixão.
A compaixão faz parte da essência da pessoa humana. É a mais humana de todas as virtudes humanas.
É a ocasião de aprender a tratar-nos como amigos em vez de tender a nos tratar como estranhos.
A compaixão afirma o “eu real” contra as pretensões do “eu ideal”.
A compaixão orienta-nos para a realidade profunda da nossa fragilidade; na compaixão alcançamos a nós mesmos; a compaixão nos leva de volta à casa.
“A pedra angular da autoajuda é a compaixão pelo eu. Isto significa viver num estado de graça consigo mesmo, significa perdoar-se sempre, significa também não condenar-se jamais, nem mesmo como único remédio aos erros que obviamente se cometem. Significa absoluta, constante, inquebrantável lealdade para consigo mesmo. Significa não abandonar jamais o próprio eu e não se unir a seu inimigo. Significa opor-se ao auto-ódio cada vez que se determina e sob qualquer forma que se apresente: recriminação, rememorações e mudanças de opiniões, depressões, auto deploração, afetações, doenças psicossomáticas, amizade com seus detratores e outras atividades perigosas.” (Isaac Rubin)
Tratar-nos com compaixão não é egoísmo.
Oferecer a mim mesmo amor e calor é um ato humano.
Se não consigo ser humano comigo mesmo, como poderei sê-lo com os outros?
Se não sou capaz de cuidar de mim mesmo, como cuidar dos outros?
Graças à compaixão para comigo, posso levantar-me depois de cada queda, abrir-me novamente à minha realidade, continuar a amar tudo aquilo que dentro e fora do meu ser se apresenta sob as vestes do humano.
Deste modo, realizo uma orientação sadia no fundo do meu ser.

Textos bíblicos: 2Cor 12,1-10: 2Cor 13,1-10.

Na oração: Ninguém pode exigir de você imediata solução de problemas nem chegada súbita ao cume da perfeição; porém, tudo em você pede a atitude de busca persistente em todas as áreas de seu ser, fazer e conviver. Sua missão é transformar, pouco a realidade, muito a si mesmo.