Retiro “A arte de cuidar com resiliência”. Dia 12
11 de novembro de 2020

9 – O resgate do modo-de-ser-cuidado

Para alguns filólogos, cuidado deriva do latim “cura”. Em sua forma mais antiga, “cura” em latim se escrevia “coera” e era usada num contexto de relações de amor e de amizade.
Expressava a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pela pessoa amada ou por um objeto de estimação.
Outros estudiosos derivam cuidado de “cogitare-cogitatus”.
Seu sentido é o mesmo de “cura”: cogitar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e de preocupação.
O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim.
Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida.
Cuidado significa então desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato.
Estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude.
A atitude de cuidado pode provocar preocupação, inquietação e sentido de responsabilidade.
Por sua própria natureza, cuidado inclui, pois, duas significações básicas, intimamente ligadas entre si:
– a primeira, a atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para com o outro.
– a segunda, de preocupação e de inquietação, porque a pessoa que tem cuidado se sente envolvida e afetivamente ligada ao outro.

Com razão, o poeta latino Horácio dizia: “o cuidado é o permanente companheiro do ser humano”.
Os dois significados confirmam a ideia de que o cuidado é mais do que um ato simples ou uma virtude ao lado de outras. É um modo-de-ser, isto é, a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros. Melhor ainda: é um modo-de-ser-no-mundo que funda as relações que se estabelecem com todas as coisas.
Ser-no-mundo significa uma forma de “existir” e de “co-existir”, de “estar-presente”, de navegar pela realidade e de relacionar-se com as todas as coisas do mundo. Nessa “co-existência” e “con-vivência” o ser humano vai construindo seu próprio ser, sua autoconsciência e sua própria identidade.
É próprio do ser humano o sentimento, a capacidade de emocionar-se, de envolver-se, de maravilhar-se, de afetar e de ser afetado.
Construímos o mundo a partir de laços afetivos. Esses laços tornam as pessoas e as situações preciosas, portadoras de valor. Preocupamo-nos com elas. Sentimos responsabilidade pelo laço que cresceu entre nós e os outros. A categoria cuidado recolhe todo esse modo de ser.
Com isso percebemos que o dado originário do ser humano não é a razão e as estruturas de compreensão, mas o pathos, o sentimento, a capacidade de empatia, a dedicação, o cuidado e a comunhão com o diferente.
É o cuidado que nos faz sensíveis ao que está à nossa volta.
É o cuidado que nos une às coisas e nos envolve com as pessoas.
É o cuidado que produz encantamento face à grandeza dos céus, suscita veneração diante da complexidade da Mãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de um recém-nascido.
Pelo cuidado, o ser humano se religa ao mundo afetivamente, responsabilizando-se por ele.
S. Inácio, na sua Autobiografia, afirma que “a maior consolação que descobrira era contemplar o céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto sentia em si um muito grande esforço para servir a Nosso Senhor”.
O cosmos abria para ele um espaço de totalidade, onde a graça de Deus, depois de consolá-lo, enchia sua existência de um desejo sempre maior de servir a Deus e ao próximo.
Nesse sentido, a oração é a contemplação do cosmos, é aprender a entrar em comunhão e saber decifrar o primeiro e mais fundamental de todos os livros: o livro da Natureza revelado aos pequeninos.
Por meio de gestos de solidariedade, de compaixão, de cuidado… poderemos ter um início de sensibilização para o grande gesto do Criador com a sua criação. Como no pacto de Noé: toda a terra, todos os animais, todas as coisas… O arco-íris significa que é todo o cosmos que se diviniza.

Textos bíblicos: Gen 9,8-17; Dan 3,24-90.