Retiro “A arte de cuidar com resiliência”. Dia 11
10 de novembro de 2020

8 – O cuidado como modo-de-ser essencial

“Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: ‘Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”. (Gaius Julius Hyginus)
O sintoma mais doloroso, já constatado há décadas por sérios analistas e pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar da civilização. Aparece sob o fenômeno do “descuido”, do descaso e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado.
A crise generalizada que afeta a humanidade se revela pelo descuido e pela falta de cuidado com que se tratam realidades importantes da vida: a destruição da natureza, a contaminação e a poluição ambiental, os moradores de rua, as crianças condenadas a trabalhar como adultos, os aposentados, os idosos, os indígenas, a marginalização dos negros e da mulher, a saúde pública, a educação mínima, a moradia digna, etc…
Tudo o que existe e vive precisa ser cuidado para continuar a existir e a viver: uma planta, um animal, uma criança, um idoso, o planeta Terra…
É urgente uma práxis de cuidado, de re-ligação, de benevolência, de paz perene para com a Terra, para com a vida, para com a sociedade e para com o destino das pessoas, especialmente das grandes maiorias empobrecidas e condenadas da Terra.
Após séculos de materialismo, buscamos hoje ansiosamente uma espiritualidade simples e sólida, baseada na percepção do mistério do universo e do ser humano, na ética da responsabilidade, da solidariedade e da compaixão, fundada no cuidado, no valor intrínseco de cada coisa, no trabalho bem feito, na competência, na honestidade e na transparência das intenções (para quem? para quê?…).
O cuidado é algo mais que um ato e uma atitude entre outras.
O cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa. E, se fizer, ela sempre vem acompanhada de cuidado e imbuída de cuidado.
Significa reconhecer o cuidado como um “modo-de-ser essencial” do ser humano.
É uma dimensão fontal, originária, primeira, impossível de ser totalmente desvirtuada.
O cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano.
O “modo-de-ser cuidado” revela de maneira concreta como é o ser humano. Sem cuidado, ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado, definha, perde sentido e morre.
Se, ao longo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo e por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana. O cuidado há de se estar presente em tudo. O ser humano é um “ser-de-cuidado”, mais ainda, sua essência se encontra no cuidado. O cuidado é o remédio contra o cinismo e a apatia, duas feridas profundas do nosso tempo. Colocar cuidado em tudo que projeta e faz, eis a característica singular do ser humano.

Texto bíblico: Mt 6,25-34.