Máscaras
21 de fevereiro de 2020

Máscaras

Rubem Alves

 

Tenho de confessar que o carnaval me cansa. O desafio das escolas de samba me causa um tédio sem fim. As plumas coloridas, as fantasias caras, o ritmo das baterias, o virtuosismo dos sambistas, o tremor das nádegas e seios nenhuma emoção me provocam a não ser o tédio. O que desfila no sambódromo é de uma mesmice chatíssima, que se repete a cada ano. Quem viu um viu todos.

Isso não se deve a nenhuma implicação minha com o carnaval. Eu até que gostaria de sentir entusiasmo. Pensei, então que, quem sabe, um carnaval diferente… Quando eu era menino e estudava piano, aprendi a tocar uma versão facilitada do Carnaval de Veneza. Fiquei sabendo, então, que em Veneza há um carnaval famoso. Mas nenhuma idéia eu tinha de como ele era, e ainda não tenho. Exceto que se trata de uma imensa orgia de máscaras que se vendem, o ano inteiro, e eu mesmo comprei algumas.

As máscaras fascinaram Bachelard. Sobre elas escreveu um ensaio em que chama a nossa atenção para o fato de que, antes de existirem como objetos usados para esconder o rosto, as máscaras moram dentro de nós como entidades do nosso psiquismo. Todas as vezes que olhamos para um rosto e ele nos parece misterioso, lugar onde um segredo se esconde, estamos pressupondo que ele não é um rosto, mas uma máscara, uma dissimulação.

Isso já é sabido de longa data. Está dito na palavra “pessoa”, que vem do latim “persona”, que quer dizer “máscara de teatro”. O teatro é algo que precisa de um público para existir. Sem um público ele não tem sentido. As “personae”, as máscaras de teatro, portanto, são usadas para um público. O público vai ao teatro para ver a “máscara”, a “representação” de um papel. Não lhe interessa o rosto verdadeiro por detrás da máscara. Esse rosto desconhecido é ignorado pelo público, não tem nome. São máscaras que têm nome. O meu nome, Rubem Alves, não é o nome do meu eu verdadeiro. É o nome da máscara pela qual sou reconhecido pelo público. É o nome do papel que esse público pede que eu represente. A aplicação do nome “persona”, máscara de teatro, a nós mesmos, implica no reconhecimento implícito de que a vida é uma farsa, uma representação, um carnaval de Veneza.

Não somos nós que pintamos as nossas máscaras. Álvaro de Campos dizia que ele era o “intervalo” entre o seu desejo, o seu eu verdadeiro e aquilo que os desejos dos outros haviam feito dele, a máscara. Essa máscara que se chama pessoa e que é representada pelo meu nome é uma evidência de que eu não me pertenço. Pertenço ao público. Pela máscara torno-me um peixe apanhado nas malhas das redes do público. Pela máscara não sou meu. Sou deles. Aí eles me fritam do jeito que desejam.

Há um princípio da medicina homeopática que diz que o semelhante se cura pelo semelhante. Sugiro aos psicodramatistas que o carnaval de Veneza é uma terapia coletiva em que esse princípio homeopático é usado: máscaras se curam com máscaras. Máscaras de papel e tinta para nos libertar da tirania da máscara colada em nosso rosto. Ponho a máscara de papel e tinta sobre a máscara de carne e ninguém fica sabendo quem sou. Fico desconhecido, sem nome. Estou livre do público. Posso deixar que o meu eu verdadeiro saia.

Mas as máscaras de papel e tinta padecem de grave limitação. Chega sempre a hora em que elas têm de ser tiradas. Sobre isso se escreveu um conto, não me recordo o autor. Marido e mulher procuram conventos onde ficar a salvo das tentações do carnaval. Representavam fielmente o papel que estava escrito nas máscaras coladas sobre os seus rostos. Mas dentro de suas malas, os seus “eus” verdadeiros haviam colocado secretamente máscaras de papel e tinta: escondidos atrás delas, eles seriam livres, pelo menos durante os curtos dias de carnaval. As despedidas de marido e mulher nem bem haviam terminado e já as mãos procuravam as máscaras. Adeus, conventos! Três dias com máscaras de papel e tinta, três dias livres das imposições das máscaras de carne: três dias sem nome, três dias de liberdade. Marido e mulher, escondidos atrás de máscaras, descobriram parceiros maravilhosos com quem dançaram, brincaram e tiveram prazeres nunca tidos um com o outro. Mas, finalmente, a hora de se tirarem as máscaras, marido e mulher se descobrem um nos braços do outro…

Carnaval é usar máscara para tirar a máscara. Trata-se de um artifício complicado, que só se usa diante daqueles que é preciso enganar para ser livre.

Mas não será possível simplesmente tirar a máscara de carne e osso e sermos nós mesmos, sem nenhum disfarce? Ë essa busca que se encontra descrita num dos poemas de Alberto Caeiro.

 

Procuro despir-me do que aprendi,

procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

desencaixotar minhas emoções verdadeiras e ser eu, não Alberto Caeiro…

 

O poeta não quer ser Alberto Caeiro. Alberto Caeiro é máscara, um nome, criatura do público, um impostor que se alojou no lugar do seu nome, ser ele mesmo, um ser que ninguém conhecia…

 

O que é que se vê quando se tira máscara? Quem responde é Álvaro Campos:

Depus a máscara e vi-me no espelho.

Era a criança de há quantos anos.

Não tinha mudado nada…

Essa é a vantagem de saber tirar a máscara.

É-se sempre criança…

 

A criança sempre horroriza o público. A criança ainda não aprendeu o papel, não usa máscara, não participa da farsa, não representa. Seu rosto e o seu eu são a mesma coisa. A qualquer momento a verdade que não devia ser dita pode ser dita pela sua boca.

As máscaras de carnaval podem ser colocadas e tiradas pela própria pessoa. Mas a máscara colada no nosso rosto só pode ser retirada por uma outra pessoa. Ela só se desprega da nossa pele quando tocada pelo toque do amor. E assim sabemos que estamos amando: quando, diante daquela pessoa, a máscara cai e voltamos a ser crianças…