Festa de São Lourenço
9 de agosto de 2020

Uma vida consumada faz fecunda a morte

A tragédia não é quando um homem morre;

a tragédia é aquilo que morre dentro de um homem enquanto ele ainda está vivo”

(Albert Schweitzer)

O sentido da vida: não há pergunta que se faça com maior angústia, e parece que todos são por ela assombrados de vez em quando: “vale a pena viver?”

Ninguém tem uma razão pela qual viver se não tem ao mesmo tempo uma razão pela qual morrer.

O ser humano tem necessidade de uma causa, de canalizar todas as suas forças, seus desejos, energias, impulsos vitais e recursos internos e externos em direção a um objetivo no qual acredita apaixonadamente. E a ele dedicar-se com tudo que é e possui. Com intensa paixão.

A vida tem fome e sede de significado. A questão do “sentido da vida” ou a “vida com sentido” é fundamental na existência humana.

– Por que vivemos? Para quê vivemos? Quanto vale uma vida e o quê vale na vida?

– Quem quer ficar ancorado? Quem não aspira preencher a própria vida de relatos, encontros, paixões, gestos, lições, projetos, ideias e sentimentos?

Sabemos que, para viver uma vida verdadeiramente humana, precisamos de sentido. Segundo Nietzsche, “aquele que tem um por que pelo qual viver pode tolerar praticamente qualquer como”.

Ao perder o sentido de sua origem e do seu fim, o ser humano perde o sentido da própria vida.

Por trás do ritmo acelerado e stressante dos nossos tempos, esconde-se um enfraquecimento do sentido da existência. A crise pós-moderna que vivemos revela este traço sinistro: as pessoas não percebem mais razões e causas pelas quais se entregar, pelas quais dar a vida. E assim não encontram igualmente motivações para viver intensamente. Segundo S. Inácio, uma pessoa vale pela causa à qual se entrega.

Muitas vezes, nossas fomes viscerais, nossos desejos que nos devoram as entranhas, nossos sonhos que nos inquietam… não encontram canais amplos para jorrar. E então se atrofiam, permanecendo reféns de uma triste mediocridade.

Surge então a “normose” que mina as forças, atrofia os sonhos e mata a criatividade. E o pior de tudo: anestesia a paixão. Se não há paixão naquilo que fazemos, tudo vira rotina cansativa, não há empenho e nem compromisso possível. “Viver a fundo” é não passar pela superfície da vida, é não perder a capacidade de amar, de vibrar, de buscar… Aqueles que são movidos pela paixão apostam que o ser humano tem potencial criador e foi feito para voar alto, para tentar, mil e uma vezes, alcançar cumes distantes.

A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade” (C. Drummond de Andrade)

A vida humana é fecunda, é potencial humano, é explosão de criatividade… Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilidades, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem.

Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.

A morte do falso eu é a condição para que a verdadeira vida se libere.

O “depois da vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu sua vida?”

Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes…

Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.

Vivemos uma das grandes mentiras de nossa cultura, ou seja, a morte já não está presente no cenário cotidiano, já não existe. A morte é distante e virtual, que não afeta à nossa própria sensibilidade.

Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Sempre é assunto dos outros, mas nunca pode ser assunto “meu”. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos. É o fracasso radical de uma cultura fundada sobre o êxito e o sucesso e, quando sente-se a presença da morte, tudo fica desestabilizado.

Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais intensa.

Ela nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente, acumulando o mínimo de arrependimento possível. Paul Theroux disse que a morte é tão dolorosa de se contemplar que nos faz “amar a vida e valorizá-la com tal paixão que ela poderia ser a causa verdadeira de toda felicidade e de toda arte”.

A experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida. “A morte, menos temida, dá mais vida”.

Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida e morte.

Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.

S. Agostinho escreveu que “é apenas perante a morte que o caráter de um homem nasce”.

Muitos monges medievais mantinham uma caveira humana em suas celas para concentrar os pensamentos na mortalidade e para servir de lição à condução da vida. Montaigne sugeriu que a mesa de trabalho de um escritor deve oferecer uma boa visão do cemitério para estimular o pensamento.

E a morte não é o fim da vida, mas sua plenitude, quando esta é vivida com sentido.

A vida não deve ser corroída pela tirania do egoísmo mesquinho: vida é encontro, interação, comunhão…

Desperdiçar a vida é estragar a existência. É trágico que a pessoa jogue fora a vida. Quem conhece o valor da vida não pode degradá-la.

E a morte é processo permanente de esvaziamento do ego para viver a entrega aos outros. Este esvaziamento não significa a anulação da “pessoa”, mas sua potenciação. Na medida em que os aspectos que a limitam diminuem, aumenta o que há de plenitude.

O essencial não é encontrar um caminho para alcançar a imortalidade, mas aprender a “morrer em Cristo”.

A vida aumenta quando compartilha e se debilita quando permanece no isolamento e na comodidade.

De fato, aqueles que mais desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se dedicam apaixonadamente à missão de comunicar vida aos outros.

O Evangelho de hoje nos ajuda a descobrir que o cuidado doentio da própria vida atenta contra a qualidade humana e cristã dessa mesma maturidade da vida à medida que ela é entregue para dar vida a outros.

Texto bíblico: Jo 12,24-26

Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grã.o de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com sentido.

Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos para que os outros vivam.