Diálogo – “Preferências Apostólicas SJ”
10 de julho de 2019

Preferências Apostólicas Universais da Companhia de Jesus, 2019-2029

 

A TODOS A COMPANHIA

 

Queridos amigos no Senhor,

As Preferências Apostólicas Universais, que promulgo com esta carta, são fruto de uma eleição. Foi uma escolha entre várias possibilidades, todas elas boas; eu quis encontrar a melhor maneira de colaborar na missão do Senhor, a que mais convém ao serviço da Igreja neste momento, a que melhor podemos realizar com o que somos e temos, buscando fazer o maior serviço divino e bem universal.

Após os dezesseis meses em que durou o processo nos diversos níveis da Companhia, apresentei ao Santo Padre quatro preferências universais:  A. Mostrar o caminho para Deus mediante os Exercícios Espirituais e o discernimento.  B. Caminhar junto aos pobres, os descartados pelo mundo, os vulnerados em sua dignidade, numa missão de reconciliação e justiça.  C. Acompanhar os jovens na criação de um futuro cheio de esperança.  D. Colaborar com o cuidado da Casa Comum.

Em sua carta de confirmação do dia 06 de fevereiro de 2019, o Papa Francisco considera que “o processo feito pela Companhia para chegar às Preferências Apostólicas Universais foi (…) um real discernimento”. Ele assinala que as preferências propostas “estão em sintonia com as atuais prioridades da Igreja expressas através do magistério ordinário do Papa, dos Sínodos e das Conferências Episcopais, sobretudo a partir da Evangelii Gaudium”.

O Santo Padre insiste em que “a primeira preferência é capital porque tem como condição de base o trato do jesuíta com o Senhor, a vida pessoal e comunitária de oração e discernimento”. Acrescenta: “Sem esta atitude orante tudo o mais não funciona”.

 

  1. Preferências Apostólicas Universais 2019-2029

Graças às Preferências Apostólicas Universais formuladas pelo Pe. Peter Hans Kolvenbach, que nos orientou por mais de quinze anos, foram iniciados os processos que devem continuar, tal como a presença qualificada na África e China, a responsabilidade de toda a Companhia pelas obras interprovinciais de Roma, que os Papas nos recomendaram, a consistência do apostolado intelectual e o serviço dos refugiados e migrantes. Nos próximos dez anos as seguintes Preferências guiarão a concretização em todos os nossos serviços apostólicos da missão de reconciliação e justiça à qual, com outras pessoas, fomos enviados.

 

  1. Mostrar o caminho para Deus mediante os Exercícios Espirituais e o discernimento

Constatamos como a sociedade secular hoje em dia desafia profundamente a Igreja em sua tarefa de proclamar o Evangelho. Como crentes nos urge superar tanto os secularismos como a nostalgia das expressões culturais do passado. Nós nos propomos colaborar com a Igreja a viver em meio à sociedade secular como um sinal dos tempos, sinal que oferece a oportunidade de ser uma renovada presença no seio da história humana. Na sociedade secular madura abrem-se espaços às complexas dimensões da liberdade humana, entre as quais se destaca a liberdade religiosa. Na sociedade secular madura existem condições para o surgimento de ambientes propícios aos processos religiosos pessoais, independentes da pressão social ou étnica. Nestes processos continua possível a indagação profunda e a eleição livre do seguimento de Jesus, a pertença à comunidade eclesial e um estilo de vida cristã nos âmbitos social, econômico e político.

Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola constituem um instrumento privilegiado para tornar presente o Senhor Jesus, sua vida e obra, na diversidade de contextos sociais do mundo atual. Portanto nos propomos a viver mais a fundo os Exercícios Espirituais, de modo que nos levem ao encontro pessoal e comunitário com Cristo e nos transformem.

Ao mesmo tempo nos propomos a oferecer os Exercícios Espirituais em todas as possibilidades possíveis, abrindo a muitas pessoas, sobretudo aos jovens, a oportunidade de servir-se deles para entrar ou avançar no seguimento de Cristo. Viver os Exercícios Espirituais e a espiritualidade que deles deriva é o nosso modo preferencial de mostrar o caminho para Deus, através do compromisso com a missão redentora de Jesus Cristo na história.

Nós nos empenhamos também na promoção do discernimento como um hábito para quem escolheu o seguimento de Cristo. A Companhia de Jesus se compromete a praticar e difundir o discernimento espiritual, pessoal e comum, como o modo ordinário de tomar decisões guiadas pelo Espírito Santo em nossa vida, obras apostólicas e na comunidade eclesial. É uma opção pela busca e pelo encontro da vontade de Deus, deixando-nos conduzir sempre pelo Espírito Santo. Através do discernimento em comum das Preferências Apostólicas experimentamos uma renovação em nosso modo de proceder. Por isso nos comprometemos a fazer uso habitual da conversação espiritual e discernimento durante a prática das Preferências em todos os níveis da vida-missão da Companhia.

Queremos compartilhar com outros a descoberta mais fundamental de nossas vidas, isto é, como o discernimento e os Exercícios Espirituais de Santo Inácio mostram o caminho para Deus. Assim como dele necessitamos, queremos seguir o chamado ao aprofundamento no conhecimento da experiência da espiritualidade inaciana. Desejamos fazê-lo a partir de uma fé viva, encarnada e consistente, alimentada pela familiaridade com Deus, fruto de uma vida de oração. Uma fé em diálogo com outras religiões e com todas as culturas. Nossa fé se realiza em obras de justiça e reconciliação porque vem do Crucificado-Ressuscitado e nos leva aos crucificados deste mundo para que sejam portadores de esperança na vida nova que o Senhor nos dá. Uma fé vivida em comunidade que se converte em testemunho de Esperança.

 

  1. Caminhar com os pobres, os descartados pelo mundo, os vulnerados em sua dignidade, numa missão de reconciliação e justiça

 

Enviados como companheiros numa missão de reconciliação e justiça, nós nos propomos caminhar com as pessoas e comunidades vulneráveis, excluídas, marginalizadas, humanamente empobrecidas, vítimas dos abusos de poder, consciência ou sexual; com os descartados deste mundo; com todos os que a tradição bíblica conhece como os pobres da terra, a cujo grito o Senhor responde com sua Encarnação libertadora.

A condição necessária para nos fazermos companheiros de caminhada ao estilo de Jesus é, a partir da aproximação com o pobre, “anunciar seu Evangelho de esperança aos inumeráveis pobres que habitam hoje nosso mundo”. Aproximarmo-nos dos pobres significa ir às periferias humanas e às margens da sociedade, adotando um estilo de vida e trabalho adequado a esta situação, para termos crédito neste nosso acompanhamento. Para alcançar esta meta, nós nos comprometemos, em todos os níveis da Companhia, a discernir quais são os mais vulneráveis e excluídos ao nosso redor, e encontrar o modo de caminhar junto a eles.

O caminho que queremos seguir junto aos pobres é o de promover a justiça social e a mudança das estruturas econômicas, políticas e sociais, geradoras de injustiça, como dimensão necessária para a reconciliação dos seres humanos, os povos e suas culturas entre si, com a natureza e com Deus. O cuidado com os povos nativos, suas culturas e direitos básicos ocupa um lugar especial em nosso compromisso pela reconciliação e justiça em todas as suas dimensões.

Confirmamos nosso compromisso com os migrantes, deslocados, refugiados, vítimas de guerras e do tráfico de pessoas; com a defesa da cultura e existência digna dos povos nativos. Nós nos propomos a continuar contribuindo para criar as condições de lhes dar acolhida humana, para acompanhá-los em seu processo de integração na sociedade, promover e defender seus direitos humanos.

Através da formação cidadã, sobretudo dos que estão na base da pirâmide social, queremos contribuir e fortalecer a democracia política. Com a promoção das organizações sociais comprometidas com a busca do Bem Comum, queremos ajudar a contraposição às nefastas consequências das diversas formas do “neoliberalismo”, do fundamentalismo e do populismo.

Nós nos comprometemos a contribuir com a eliminação dos abusos dentro e fora da Igreja, procurando ouvir e dar a apropriada atenção às vítimas, fazer justiça e reparar os danos causados. Este compromisso inclui a adoção de políticas claras de prevenção dos abusos, a formação permanente dos que estão comprometidos com a missão e com o esforço para chegar até às raízes sociais onde estes abusos se originam, promovendo, efetivamente, uma cultura de salvaguarda de todas as pessoas vulneráveis, especialmente os menores de idade.

Com muitas outras pessoas e instituições nos comprometemos a promover uma cultura de hospitalidade e da salvaguarda dos direitos dos menores e pessoas vulneráveis, como resultado da mudança das estruturas sociais.

Acompanhar os empobrecidos nos obriga a melhorar nossos estudos, análises e reflexão para compreender em profundidade os processos econômicos, políticos e sociais, que geram tanta injustiça, e contribuir para a criação de modelos alternativos. Nós nos comprometemos a propiciar um processo de mundialização/globalização no qual seja reconhecida a multiculturalidade como riqueza humana, que proteja a diversidade cultural e se promova a interculturalidade.

Acompanhamos os pobres a partir de nossa fé em Deus Pai de misericórdia que convida à reconciliação como fundamento da nova humanidade

 

  1. Acompanhar os jovens na criação de um futuro cheio de esperança

 

O Sínodo de 2018 reconhece os jovens, em sua situação própria, como o lugar desde o qual a Igreja quer se colocar para perceber e discernir a passagem do Espírito Santo por este momento da história humana. Pobres e jovens são lugares teológicos complementares que, além disto, se entrecruzam. Os jovens, em sua maioria pobres, enfrentam enormes desafios no contexto atual, como a diminuição das oportunidades de trabalho, fonte de estabilidade econômica. Enfrentam também o aumento da violência política, múltiplas formas de discriminação, progressiva degradação do meio ambiente, entre outros, que dificultam encontrar o sentido da vida como seres humanos, e dificultam ainda o aproximar-se da experiência de Deus.

A juventude é a etapa da vida humana na qual cada pessoa toma decisões fundamentais para se inserir na sociedade. É a etapa em que busca sentido para sua existência e para a realização de seus sonhos. Acompanhar este processo, a partir da experiência do discernimento e acompanhamento da Boa Nova de Jesus Cristo, é uma oportunidade para mostrar o caminho que leva a Deus, caminho que passa pela solidariedade com os seres humanos, para a construção de um mundo mais justo.

Os jovens continuam abertos ao futuro, com a esperança de construir uma vida digna num mundo reconciliado e também pacificado com o meio ambiente. São os jovens, com sua perspectiva, os que podem nos ajudar a compreender melhor esta mudança de época que estamos vivendo, como também sua novidade cheia de esperança. Na atualidade os jovens são os principais protagonistas da transformação antropológica que vem se processando através da cultura digital própria de nosso tempo. Esta transformação abre à humanidade uma nova época histórica. Vivemos numa mudança de época. Daqui emerge um novo ser humano e uma nova forma de estruturar a vida em suas dimensões pessoais e sociais. Os jovens são portadores desta nova forma de vida humana que pode alcançar, na experiência do encontro com o Senhor Jesus, uma luz que ilumine o caminho rumo à justiça, à reconciliação e à paz.

Criar e manter espaços abertos aos jovens na sociedade e na Igreja é uma contribuição a ser dada pelas obras apostólicas da Companhia de Jesus. Elas devem ser espaços abertos à criatividade juvenil, nos quais se propicie o encontro com o Deus da vida, revelado por Jesus, como também para o aprofundamento da fé cristã. São espaços em que se deve promover o discernimento do caminho no qual cada um pode alcançar sua felicidade contribuindo com o bem-estar de toda a humanidade.

Os jovens vivem a tensão entre as tendências à homogeneidade cultural e a emergência de uma sociedade humana intercultural que respeite e a diversidade e dela se enriqueça. A lógica da economia do mercado conduz à homogeneidade. Pelo contrário, a juventude aspira à diversidade que corresponde ao exercício da liberdade e abre espaços criativos para contribuir ao surgimento de uma sociedade humana intercultural. A partir daí podem empenhar-se na construção social de uma cultura de defesa, que garante um ambiente sadio para os meninos, meninas e jovens, de modo que sejam criadas condições para desenvolverem todas as suas potencialidades como seres humanos.

Acompanhar os jovens exige de nós coerência de vida, profundidade espiritual, abertura à partilha da vida-missão na qual encontramos sentido para o que somos e fazemos. A partir disto podemos aprender com os jovens a encontrar Deus em todas as coisas e a contribuir, dentro do que podemos oferecer com nossos ministérios e apostolados, a viver em profundidade esta etapa da vida. Acompanhar os jovens nos leva à via daquela conversão pessoal, comunitária e institucional que torna possível esta mesma conversão.

 

  1. Colaborar com o cuidado da Casa Comum

 

Na encíclica Laudato Si’ o Papa Francisco nos recorda a corresponsabilidade de todos os seres humanos no cuidado da Criação que muitos povos a consideram “Mãe Terra”. “Esta irmã clama pelo dano que lhe provocamos pelo uso irresponsável e abuso dos bens que Deus nela colocou. (…) Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, está nossa oprimida e devastada terra, que «geme e sofre dores de parto»” (Rm 8,22).

O dano feito à terra é, ao mesmo tempo, um dano para os mais vulneráveis, os povos nativos, os camponeses que se veem obrigados a emigrar, como também os habitantes das periferias urbanas. A destruição do meio ambiente, gerada pelo sistema econômico dominante, provoca um dano que afeta gerações, porque atinge não somente os atuais habitantes da terra – em particular os mais jovens –, como também condiciona e põe em risco a vida das futuras gerações.

Nós nos propomos, com o que somos e com os meios a nosso alcance, a colaborar com os outros na construção de modelos alternativos de vida, fundados no respeito à Criação e no desenvolvimento sustentável capaz de produzir bens que, distribuídos com justiça, assegurem uma vida digna a todos os seres humanos em nosso planeta. A conservação das condições de vida do planeta é uma responsabilidade humana cheia de sentido ético e espiritual. Nossa colaboração inclui participar nos esforços para a pesquisa e análise profundas que apoiem a reflexão e o discernimento necessários para tomar as decisões certas e capazes de sanar as feridas já infringidas ao equilíbrio ecológico. É preciso ter especial cuidado com aquelas áreas da Terra que são as mais decisivas para manter o equilíbrio da natureza em função da vida, como o Amazonas, as bacias hidrográficas do Congo, a Índia e Indonésia, assim como as grandes extensões marinhas. Fazer isto é uma forma de prestar autêntico culto à obra criadora de Deus.

Para isto são necessárias decisões audazes para evitar novos danos e iniciar a mudança para um novo modelo de vida necessário para que todos possam aproveitar os bens da criação. Neste processo queremos estar ativamente presentes.

Laudato Si’ lembra que “a atitude básica de auto transcender, rompendo a consciência alienada e a autorreferencialidade, é o fundamento que possibilita o cuidado com outros e com o meio ambiente; desta atitude básica brota a reação moral para considerar o impacto provocado por cada ação e decisão pessoais”. É lógico concluir que aos cristãos, “falta-nos a conversão ecológica que implica o desabrochar de todas as consequências do encontro com Jesus Cristo no relacionamento com o mundo que nos rodeia. Viver a vocação de protetores da obra de Deus é parte essencial de uma existência virtuosa”.

É necessário, portanto, sair de si mesmo e cuidar com carinho do que é bom para os outros. Um modelo de vida humana reconciliada com a Criação não será possível se não formos capazes de sair do individualismo e do imobilismo.

A conversão, para nós, jesuítas, companheiros e companheiras na missão, começa com a mudança dos hábitos de vida propostos por uma estrutura econômica e cultural fundada no consumo e produção irracional de bens. A palavra do Papa Francisco nos anima nesta direção: “É muito nobre assumir o dever de cuidar da Criação com pequenas ações cotidianas, e é uma coisa maravilhosa que a educação seja capaz de motivá-las a ponto de moldar um estilo de vida”.

 

  1. Guiados pelo Espírito

O processo que vivemos tem sua fonte nos ventos da renovação eclesial que o Espírito suscitou no Concílio Ecumênico Vaticano II, presente e atuante ainda hoje na Igreja. É o mesmo Espírito que atuou nas Congregações Gerais 31 a 36, conduzindo a Companhia a um exigente processo de renovação espiritual e apostólica. Inspirados na imagem de nossos primeiros companheiros em Veneza (1537), quando se perguntavam para onde o Espírito os guiava, a Congregação Geral 36 nos enviou como companheiros numa missão de reconciliação e justiça.

Inspirada pelas palavras do Papa Francisco, a CG 36 sentiu a necessidade de voltar com maior confiança às nossas fontes e ao discernimento em comum. Condividindo nossa experiência daqueles meses, demo-nos conta da graça que significou o próprio processo do discernimento em comum, vividos em todos os níveis do corpo da Companhia. Para muitos foi uma redescoberta de algumas dimensões da espiritualidade inaciana, uma renovação na prática da conversão espiritual, para procurarmos juntos o caminho de Jesus, e de experimentar no discernimento em comum o modo de encontrar a vontade de Deus em nossa vida-missão. Experimentamos a graça de nos sentir um só corpo, de crescer na indiferença e na disponibilidade para nos tornar uma comunidade de discernimento com horizontes abertos. Com estas preferências assumimos o compromisso de seguir aprofundando o caminho, apenas iniciado, de apropriar-nos desta dimensão fundamental de nossa vida e missão.

Chegamos a viver um processo em que, passo a passo, houve um consenso, que, cremos, foi guiado pelo Espírito Santo. Tínhamos iniciado com muitas dúvidas e inquietações, sem conhecer bem o caminho, procurando superar os ceticismos. Como os primeiros companheiros, também nós viemos de origens e culturas diferentes, com visões e entendimento diferentes das coisas. Também encontramos um desejo unificado, uma paixão comum para servir a Jesus que leva sua cruz aos confins do mundo. Fomos aprendendo lentamente a crer e a confiar; poderíamos dizer que o Senhor nos conduziu com sua mão, como a Inácio em Manresa: como um mestre-escola. A contribuição da base da Companhia (comunidades, obras apostólicas, regiões e províncias) e dos jesuítas em formação, foi o ponto de partida vital.

As contribuições das seis Conferências de Superiores Maiores foram surpreendentemente coincidentes. Como os primeiros discípulos, ao remar mar adentro e ao nos encontrar no meio da tormenta, sentimos o estupor de experimentar como o Senhor veio até nós. É Ele, o Senhor encarnado, crucificado e ressuscitado, que nos mostra suas chagas e nos convida a nos unir a Ele em busca da justiça. Convida-nos a partir rumo a novas fronteiras, para acompanhar aqueles que a sociedade descartou; convida-nos a anunciar a Boa Nova a todas as pessoas, para que possam ser transformadas pelo amor de nosso Deus. Nossos corações endurecidos mudam-se dia a dia, enchendo-se de misericórdia e compaixão.

Este processo nos ensinou que as Preferências Apostólicas Universais são um meio pelo qual continuamos guiados pelo Espírito. Mais ainda, as Preferências são um instrumento para aprofundarmos o estilo de vida-missão indicado pela CG 36, quando esta nos convida à renovação espiritual e apostólica, incorporando à nossa vida normal o discernimento, a colaboração com os outros e o trabalho em redes.

Sentimos com força que as Preferências ajudarão ao corpo apostólico da Companhia se estas mantiverem claramente a unidade entre vida e missão; ajudarão ao corpo apostólico se as entendermos como orientações que vão além do “fazer algo”, se chegarem a nos transformar como pessoas, como comunidades religiosas, e, ainda, como obras e instituições apostólicas em que colaboramos com outros. Por conseguinte, cada Preferência não só nos assinalará algum ponto focal de nosso apostolado, como também nos convidará a renovar nossa própria vida para tornar nosso trabalho digno de crédito e efetivo.

São Preferências que procuram dar uma resposta concreta à missão recebida, resposta ao Senhor que ouve o grito de um mundo ferido, o grito dos mais vulneráveis deslocados e marginalizados; será nossa resposta aos efeitos da retórica que divide e desmantela nossas culturas, ao crescente distanciamento entre ricos e pobres. Será nossa resposta ao grito dos jovens em busca de esperança e sentido; ao grito da terra e sua gente degradados a ponto de pôr em risco sua própria existência. Um mundo no qual gerações inteiras não ouviram falar de Jesus e nem de Seu Evangelho.

Nossa Igreja foi golpeada pelo pecado de seus membros e por todo o sofrimento que se seguiu como consequência. Nossa Igreja navega em meio a fortes tormentas. Na Companhia nos demos conta, com dor e humildade, de nossas próprias vulnerabilidades e de nosso pecado. Sentimos vergonha e confusão quando nos colocamos diante do Senhor, pedindo-lhe que nos perdoe, que nos cure e nos mostre seu amor misericordioso. Somente como pecadores perdoados e amados podemos seguir adiante. Somente poderemos levar aos outros a compaixão dele se nós mesmos, individualmente e em grupo, tivermos experimentado sua compaixão. De fato, a partir de nossa experiência de sermos amados e salvos é que nosso desejo de missão encontra sua profundidade e energia. É precisamente em meio aos desafios de nosso mundo ferido e de nossa própria ferida que ouvimos o chamado suave, mas insistente, do Senhor.

As Preferências Apostólicas Universais propõem o aprofundamento de tais processos de conversão pessoal, comunitária e institucional. São orientações para melhorar o trabalho apostólico do conjunto do corpo da Companhia e do modo como realizamos nossos ministérios; ao mesmo tempo pretendem ajudar aos jesuítas e companheiros e companheiras de missão, a fazer de sua vida apostólica um caminhar rumo a Deus. Queremos convidar todos os seres humanos a seguir o caminho aberto por Jesus de Nazaré, caminho que estamos percorrendo, seguindo seus passos, animados por seu Espírito.

Não são nossas Preferências, seguimos o Espírito Santo; Ele nos guiou e inspirou. Do Papa que as confirmou, nós as recebemos, confiados nele, como Inácio e os primeiros companheiros; é o Papa quem tem a melhor visão das necessidades do mundo e da Igreja. As Preferências Apostólicas Universais nos levam a superar toda forma de autorreferencialidade ou corporativismo, e assim nos convertem em autênticos colaboradores na missão do Senhor, compartilhada com muitas pessoas dentro e fora da Igreja. São uma oportunidade para nos sentirmos a mínima Companhia colaboradora.

 

III. A necessária conversão pessoal, comunitária e institucional 

A Contemplação para alcançar Amor começa com uma advertência que parece comum; mas precisa ser recordada continuamente: “o amor deve ser demonstrado mais em obras do que em palavras”. O processo de discernimento das Preferências Apostólicas Universais causou nos participantes da CG 36 um profundo agradecimento pela abundância da graça recebida. Ao mesmo tempo, os participantes vivenciaram um forte chamado à conversão pessoal, comunitária e institucional.

Acolher as Preferências significa pô-las em prática imediatamente, mudando o estilo de vida e de trabalho que criam obstáculo à renovação das pessoas, comunidades e obras comprometidas com a missão. A resposta dos primeiros apóstolos nos inspira; eles se desapegaram rapidamente de seus instrumentos e hábitos de pescadores para iniciar o caminho do discipulado seguindo a Jesus. Assim que forem promulgadas as Preferências, serão disponibilizados, a todas as unidades apostólicas da Companhia, recursos para ajudar sua planificação e ação prática. Uma das dimensões necessárias de nossa conversão é assumir a responsabilidade pela busca da administração adequada dos recursos econômicos e financeiros para sustentar a prática efetiva do serviço apostólico inspirado nas Preferências Apostólicas Universais.

O chamado é para compartilhar da vida e missão de Jesus Cristo. O ponto de partida do envio é o amor de Deus Uno e Trino, que não se paralisa perante a situação do mundo, mas envia Jesus para que assuma a condição humana e a entrega de si para nos abrir as portas da vida divina, ao amor a todos os seres humanos. Jesus, ao morrer, demonstra um amor tão grande que vence a morte. Aceitar este chamado é entregar a própria vida num amor transformado em obras de justiça e reconciliação; é transformar-se num autêntico seguidor de Jesus Cristo, num membro ativo da Igreja e da Companhia a serviço da missão colaborando com muitas outras pessoas. A conversão nos capacita a participar da missão; é a conversão à fé na Boa Nova do Reino de Deus que se faz próximo; conversão à fé viva que se expressa nas obras, obras que tornam possível o cumprimento da promessa de Deus na história humana.

Tornando viva a memória da experiência dos primeiros companheiros em Veneza, a CG 36 nos convida a voltar às nossas raízes. Com nossos primeiros companheiros em Veneza nos confirmamos no que eles “tinham experimentado como fonte de vida: compartilhar uma vida em comum como amigos no Senhor; estar muito perto dos pobres e pregar com alegria o evangelho”. Fazer de nossas comunidades espaços de discernimento em comum, que animam a vida de oração, compartilham a Eucaristia e praticam o diálogo espiritual, nos capacita para condividir o dom do discernimento, modo de nos deixar guiar pelo Espírito nas obras apostólicas e em todos os ministérios. A vida austera, junto aos pobres, promove a criatividade de que necessitamos para fazer mais com menos, e dá maior credibilidade ao nosso trabalho apostólico feito com gratuidade.

Ao mesmo tempo, para corresponder à chamada das Preferências Apostólicas Universais precisamos nos esforçar mais do que nunca no aprofundamento intelectual que de nós exigem nosso carisma e tradição fundacionais, aprofundamento que é acompanhado pela necessária profundidade espiritual. A Companhia está comprometida com o apostolado intelectual porque sua profundidade caracteriza todas as suas formas de apostolado. Queremos continuar a servir a Igreja com o apostolado intelectual, isto é, exprimindo a fé com consistência intelectual. Por conseguinte, todo membro deste corpo apostólico está chamado a se formar adequadamente por toda sua vida. A profundidade intelectual exige hábitos de pensamento e obriga a não descuidar a formação contínua. Sem esta condição, a contribuição da Companhia de Jesus à missão da Igreja não responde à exigência do magis inaciano.

A renovação apostólica da Companhia de Jesus procede da prática das Preferências Apostólicas Universais; esta renovação tem como condição o aprofundamento da colaboração entre os jesuítas e entre os companheiros e companheiras da missão, como também da colaboração entre as obras e unidades apostólicas, entre outras instâncias da Igreja e muitas outras pessoas e instituições que contribuem com as inseparáveis dimensões da reconciliação entre os seres humanos, com a Criação e com Deus. “Nossa missão se faz mais profunda e nosso serviço mais amplo através da colaboração com todas as pessoas com as quais trabalhamos”, afirma a CG 36, confirmando as orientações das Congregações Gerais 34 e 35.

A experiência vivida durante o discernimento em comum das Preferências confirma aquilo que fora percebido pela CG 36: “ainda que constatemos avanços notáveis na colaboração vasta e ampla da Companhia, reconhecemos que obstáculos persistem. (…). Precisamos de um discernimento inclusivo e de um planejamento contínuo, da avaliação de nossos esforços para superar esses obstáculos e para normalizar a participação dos colaboradores na missão nos diversos níveis de atividade apostólica e no governo da Companhia”. Incorporar plenamente a dimensão da colaboração em nossa missão-vida é uma condição sem a qual os desejos de um maior serviço à missão do Senhor correm o risco de não se tornarem realidade em nossas obras e estilo de vida.

Com as Preferências Apostólicas Universais nos propomos a concentrar e concretizar as energias vitais e apostólicas durante os próximos dez anos, de 2019 a 2029. Recebemo-las como missão da Igreja através do Santo Padre Francisco, que as aprovou, confirmando o discernimento em comum realizado pelo corpo apostólico. Compete a nós, como corpo obediente ao Espírito Santo, planejar sua efetivação prática em todas as dimensões de nossa missão-vida. As Preferências pretendem desencadear um processo de reanimação vital e criatividade apostólica que nos faça melhores servidores da reconciliação e da justiça. Será um processo que iremos construindo e examinando segundo as pessoas, tempos e lugares, à luz das orientações da Igreja e sob a guia do Espírito.

Que Nossa Senhora, Mãe da Companhia de Jesus, nos obtenha de seu Filho a graça da coerência de vida, para que, pregando o que nos permite conhecer o Senhor e vivendo o que pregamos, sejamos testemunhas do amor de Deus derramado sobre a humanidade e, impelidos pelo Espírito Santo, colaboremos efetivamente na reconciliação de todas as coisas em Cristo.

 

Arturo Sosa, S.I. Superior Geral

Roma, 19 de fevereiro de 2019