Contemplação da encarnação
21 de abril de 2020

Contemplação da encarnação (EE. 101-109)

O relacionamento das Pessoas Divinas entre si é tão vasto que o mundo inteiro nele cabe

Contemplar: “estar com Deus no Templo, no lugar de sua presença”. O ponto de partida de toda contemplação é o olhar contemplativo amoroso das Três Pessoas Divinas. A partir deste divino olhar contemplativo é que a pessoa é chamada a olhar, escutar, observar… Contemplar a Trindade é contemplar sua obra criadora, redentora e santificadora e, concretamente, ser admitido a colaborar com essa obra. É muito importante para Deus que sejamos mais gente, mais humanos; daí a Encarnação. “A glória do homem é Deus; porém o receptáculo de toda a ação de Deus, da sua sabedoria e do seu poder é o homem” (S. Irineu).

Para S. Inácio, a Encarnação começa com um “olhar”, com um modo de olhar que compromete o interior da realidade trinitária. O exercício da “contemplação da Encarnação” consistirá em acompanhar o olhar amoroso e compassivo de Deus sobre o mundo, em contemplar Deus que contempla o mundo, em ver a humanidade com os olhos de Deus, como Deus a vê. Olhar o mundo em que vivemos com os olhos de ternura, de misericórdia e de compaixão de Deus. Uma vez que Deus “se fez carne” e entrou nas coordenadas do nosso espaço e do nosso tempo, só podemos ouvir sua voz na nossa história. A contemplação da “história da Encarnação”, longe de ser uma evasão da história, é o meio de encontrar a Vontade de Deus na história da própria vida. Ali, na marginalidade, a “Palavra se faz história, contingência, solidariedade e fraqueza; mas podemos também acrescentar que por isso mesmo a história, a nossa história, se faz Palavra” (Diaz Mateos).

Com espantosa audácia, S. Inácio nos apresenta um Deus contemplativo, que olha e vê; um Deus comprometido com a vida e a salvação do gênero humano; um Deus compassivo que se deixa atingir e comover pela “cegueira”, a morte e a condenação de “todos os homens”. Mais admirável que o Deus da Criação, que disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gen 1,26), é o Deus da Redenção que, no seu diálogo intratrinitário, diz: “Façamos a redenção do gênero humano” (EE. 107).

A encarnação é a revelação de um Deus surpreendente: da Virgem Maria “… nascera o primeiro louco de Deus e, que surpresa!, era o próprio Deus” (M. Evdokimov). Deus responde ao espetáculo de devastação e de perdição da humanidade com a “determinação” da Encarnação, com um novo gênesis, uma re-criação da humanidade. Em virtude da Criação e da Encarnação, nada é profano para quem sabe “olhar”. Tudo está grávido da presença amorosa de Deus. “E o Vento se fez Evento, e o Afeto se fez Feto… a Palavra se fez Carne” (Rubem Alves).

Encarnação do Filho de Deus: lugar por excelência para aprendermos que Deus e o Homem não são adversários, mas diferenças que se amam. “A abreviação, a epítome de Deus é o homem… Quando Deus quer ser não-deus, surge o homem. E se o próprio Deus é homem e o permanece eternamente, é coibido ao homem pensar pouco de si, pois ele pensaria, então, pouco de Deus, então o homem é eternamente o proferido Mistério de Deus, que participa eternamente do Mistério de seu fundamento” (K. Rahner).

Preâmbulos:

1. “Traer la historia”: História como mensagem, enquanto Palavra de Deus dirigida a mim nesta situação concreta. História como verdadeiro lugar teológico da experiência, epifania, onde Deus se deixa encontrar e se faz entender pelo ser humano. Ao “trazer essa história” para o momento presente no exercício da contemplação, somos convidados a participar desse movimento, e a deixar-nos mover na mesma direção do desígnio salvífico de Deus.

“História”

. relatos de um acontecer que permite a identificação afetiva simples e espontânea;

. contemplação da Trindade x contemplação do Mundo – parece duas realidades distantes, separadas. O sim de Maria é o elo de ligação.

. Encarnação – contraste entre a grandiosidade da visão da Trindade e a simplicidade da aceitação de Maria.

2. Composição vendo o lugar:

Há um ponto geográfico em nossa terra onde se unem o Mistério de Deus e a história dos homens. A espiritualidade inaciana é descendente, luminosa. A luz vem de Deus e atinge tudo; tudo tem sentido. O “lugar” humano passa de um espaço indefinido, longínquo (“toda a terra”) a um “lugar” santo, definido, que se pode reconhecer e detalhar de forma imediata (a casa, os aposentos, as palavras de Maria…). Deus escolhe a simplicidade, a pequenez… Deus é MAIOR porque se faz o MENOR: integra tudo, nada escapa da ação salvadora de Deus. A Encarnação, embora seja um mistério de dimensões universais, só pode ser vista e contemplada no particular, à medida que vai se concretizando na história.

3. Petição: CONHECIMENTO-AMOR-SEGUIMENTO

Conhecimento interno: entendendo como interno a Jesus (não ficar no aspecto externo de sua vida; graça de conhecer o mais íntimo de sua pessoa, de sua vida e de sua missão, de seus pensamentos e sentimentos…) e interno a nós (conhecimento que chega ao mais profundo de nosso ser e nos transforma). Buscando o “conhecimento do Senhor”, o ser humano caminha também para o “conhecimento de si próprio”. O conhecimento do Senhor e o conhecimento de si próprio, ambos da ordem da graça, porque revelam ao homem, ao mesmo tempo, como ele “conhece” o Senhor e como é por Ele “conhecido”. Conhecimento de coração, de afeto, de entrega…

Relação existencial, um encontro com a Pessoa de Jesus. Não se trata de um conhecimento intelectual, especulativo, psicológico… mas de um conhecimento vital: conhecimento que penetra em Jesus Cristo e penetra em nós; permite conhecer a raiz profunda de sua Vida interior; sintonizar-se dom seus critérios, atitudes e atos (“hábitos do coração”). Conhecimento dinâmico e transformante que nos leva à identificação com Cristo. Conhecimento que penetra até o coração e se traduz na vida real em gestos próprios de Cristo.

Conhecimento-Amor-Seguimento: como um círculo; somente aquele que segue, pode chegar a conhecê-lo e amá-lo (Apóstolos).

Pontos: OLHAR-ESCUTAR-OBSERVAR

. Enfatizando os contrastes que formam a diversidade de composição do gênero humano (brancos, negros…) S. Inácio abre o olhar do exercitante para a universalidade contrastada da história; toda ela vai ser enriquecida pela Encarnação que começa a partir da iniciativa trinitária e da resposta fiel de Maria.

. A Encarnação do Verbo se dá neste mundo de miséria, de dor, de contrastes. A Encarnação não é um acontecimento isolado, mas atinge a todos. Muda-se a situação de todos e da História (Nova Criação); abre-se para todos os homens um novo “Kairós”, uma nova possibilidade de Salvação. “Deus fez-se homem”: entra na história dolorosa dos homens para intervir nela, salvando-a. Na Encarnação, Deus se revela como Deus próximo, de comunhão e de solidariedade com o ser humano.

. Há uma inversão radical de toda a realidade: o divino faz-se humano e o humano faz-se divino. O Filho “entra” num mundo de conflito, num mundo que lhe é hostil. A História na qual Cristo “entra” adquire também um valor definitivo: passa a ser História da Salvação. Pela Encarnação de Cristo mudou-se a situação de perdição e de morte na qual todos os homens estavam presos. Ele traz Vida nova: “Eu vim para que todos tenham VIDA” (Jo 10,10)

. Assim como a Encarnação do Verbo foi determinada a partir de um “olhar” que saiu do coração de Deus, que pousou sobre o mundo e que voltou ao seu coração, estremecendo-O de compaixão e movendo-O à ação, assim toda decisão-ação apostólica, para que dê frutos de salvação, tem de ter sua origem num olhar misericordioso, comovido; um olhar que move a querer participar do sofrimento dos que sofrem…

Reflectir para sacar provecho…”: “Reflectir: reflejar-se la luz en un cuerpo opaco” (Dicion. Nobles)

Reflectir” não é reflexionar, senão projetar sobre minha própria vida o Mistério contemplado, para deixar-me iluminar e mover pelo Espírito; pôr-se diante de Deus como um espelho para deixar-se orientar e “ordenar” por Ele. Na contemplação inaciana há também um tempo para a reflexão, mas a partir da atividade contemplativa. A Luz do mistério contemplado deve “refletir-se”, ter reflexos, na pessoa que contempla, na sua inteligência, na sua vontade e no seu comportamento (cf. 2Cor 3,18)