Cine Matinée – “Fale com ela”
20 de maio de 2019

Filme: Fale com ela

por Luiz Santiago

 

As conexões e o ‘encontrar-se’ são os elementos mais caros nos filmes de Almodóvar desde meados dos anos 1990, especialmente após A Flor do Meu Segredo. Daí em diante, sua força melodramática foi se tornando mais intensa, seus temas ainda mais universais e a problemática central de seus roteiros, particularmente reflexiva. A grande revolução em sua filmografia aconteceu em 1999, com o icônico Tudo Sobre Minha Mãe, filme que deu todas as cartas para o diretor chegar ao tocante e inesquecível Fale Com Ela (2002), que traz uma das temáticas favoritas na construção de personagens do cineasta espanhol, ou seja, os desencontros particulares e o encontro entre os desesperados.

Como todo grande melodrama, o filme tem doses cavalares de palco, mas aqui o foco não é o teatro e sim o balé. A obra é aberta com Pina Bausch e Malou Airaudo interpretando uma cena do espetáculo Café Müller, mas este não é o único momento de representação externa encontrado no filme. Touradas – que rendeu polêmicas para o longa junto a grupos de defesa dos animais, embora a prática seja legal em praticamente todo o território espanhol –; cenas de um filme fictício chamado O Amante Minguante, inspirado em O Incrível Homem que Encolheu (1957); Caetano Veloso cantando Cucurrucucú Paloma; mais espetáculo de dança nas cenas finais e cartazes de filmes espalhados por cômodos ligados a Alicia e Benigno, tais como King Kong (1933) e Metrópolis (1927) – filmes pautados por impasses de interação entre indivíduos/criaturas – são exemplos de relações complexas vistas em vias paralelas à obra, todas focadas em delinear os laços que o roteiro destrinchará adiante.

A história pode causar estranhamento no início. Dois homens que se tornam amigos por cuidarem de mulheres em coma vão tendo suas percepções da vida e do mundo mudadas a partir de coisas aparentemente simples de seu cotidiano. Habilidoso que é no trato de influências emotivas para seus personagens, Almodóvar usa todos os motores textuais para fazer do presente um espaço em constante transformação, embora isso quase não seja percebido à primeira vista e só ganhe realmente um impacto para o espectador e até mesmo para os personagens, do meio da fita para o final.

Como complemento, o olhar para o passado surge e dá maior sustentação ao que é mostrado na tela. Neste ponto, não só as dicas narrativas mas também estéticas saltam aos olhos. Notem que para cada momento do passado, para cada lembrança e retorno ao presente, o excelente fotógrafo Javier Aguirresarobe (que já assinou trabalhos incríveis como Os Outros e Vicky Cristina Barcelona) utiliza um elemento de cor para ligar as partes e dar a tônica do próximo ‘ato’. Amparado por uma montagem orgânica e fluída, o diretor de fotografia conseguiu criar com alguns filtros a premonição de algumas catástrofes pessoais/sociais/morais ou de deixas para eventos mais calorosos, para contatos que modificariam para sempre os dois homens da história.

O público quase não percebe essas fases de desenvolvimento porque a montagem é bem feita e torna o andamento da película dinâmico e instigante todo o tempo. Além disso, não temos pontas soltas ou cenas que abrem janelas que jamais seriam fechadas. Almodóvar foi sagaz em fazer de todas as presenças, das enfermeiras e equipe do hospital até os familiares, amigos ou conhecidos dos protagonistas, âncoras e impulsos que enriquecem a personalidade daqueles indivíduos sem que o roteiro precise enxertar cenas com explosões de sentimentos, gritos e didáticos marcos de transformação.

O caminho final traz uma discussão moral intensa, permeada por suspense e lágrimas. Vemos como o ator Darío Grandinetti mostra uma outra face de Marco Zuluaga, sem nunca perder a delicadeza que este personagem tem. Sua reação ao que acontece com Benigno e mesmo a discussão dos atos do amigo são pautadas, quase digeridas e sempre mostradas como um ato humano que pode ser bom ou ruim dependendo do ponto de vista – não há circunstâncias atenuantes ou defesa do que quer que seja. Ele quase assume o olhar do espectador, mas não é neutro a respeito. Zuluaga continua com uma sensibilidade forte, chorando sempre que algo o impressiona, característica que torna este um dos personagens masculinos (e heterossexuais) mais interessantes de Almodóvar.

A emoção, o amor egoísta, o estupro e a discussão das possibilidades e validade de ações para gerar vida (e realizar sonhos) aparecem cobertas com um outro manto, o da fala, da conexão, do diálogo e entendimento entre as pessoas e como isso pode acontecer de diversas formas. Marcado por uma estética forte, perceptível por uma direção de arte que sempre mescla tendências e dá nuances íntimas aos personagens, assim como a romântica trilha sonora, Fale com ela ironiza o valor da comunicação e o que ela pode trazer de bom ou ruim para pessoas com níveis diferentes de preparação para dizer ou ouvir coisas. Nesse aspecto, o longa serve como um resumo dos anos anteriores do diretor – entre a tragédia, o amor, a autodestruição e a vontade de pertencer – e como abertura de uma nova estrada para o “Almodóvar dos anos 2000”, que daria voz a crises do homem virtualmente conectado ao mundo, mas incapaz de identificar o que tem para oferecer ao outro. E a inicial recusa de saber ouvi-lo e respeitá-lo.