Cine Matinée
26 de fevereiro de 2019

Filme: A rosa púrpura do Cairo

Luiz Santiago

 

Filmes metalinguísticos tem um poder especial sobre o espectador, principalmente sobre os cinéfilos. Observar o cinema “fazendo-se” como produto é uma atividade de caráter voyeur que deixa claro o nosso encanto pelo mundo do outro lado da tela e a curiosidade por sua “nudez técnica”. Dentre os cineastas estadunidenses que dedicaram filmes ao cinema, Woody Allen se apresenta como o mais constante, trazendo não só homenagens à sétima arte (Dirigindo no Escuro), aos seus diretores favoritos (Interiores e Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão, Simplesmente Alice), aos astros (Celebridades) e a gêneros e escolas cinematográficas como o Noir (O Escorpião de Jade), o Expressionismo Alemão (Neblina e Sombras) e o Documentário (Um Assaltante Bem Trapalhão e Zelig).

Se olharmos criticamente para as homenagens de Woody Allen ao cinema, constataremos que A Rosa Púrpura do Cairo (1985) é a obra mais notável, impessoal e sem esperança de sua safra metalinguística. Embora já tivesse apresentado o universo do cinema num enredo felliniano extraordinário (Memórias, 1980), filme também acrescido de doses de realismo fantástico, foi em A Rosa Púrpura que o diretor fez com perfeição uma película com esse porte fora da comédia. Além disso, foi aqui que o cineasta conseguiu trazer esperança, encanto pelo cinema e docilidade em um texto que é essencialmente melancólico e, de certo modo, trágico.

A história é ambientada no período da Grande Depressão. Cecília, uma garçonete que vive um casamento fracassado, passa horas sonhando com os filmes que assiste e com o glamour dos astros do cinema. A contrastante realidade social e pessoal da protagonista em relação ao mundo mostrado nos filmes serão as colunas centrais de A Rosa Púrpura do Cairo, e o doloroso impasse de escolher entre a realidade e a ficção acaba atingindo em cheio o espectador.

Com essa premissa da escolha entre o maravilhoso impossível e a dura realidade, somos arrastados para um dos finais mais secos e, paradoxalmente, emocionantes dos filmes de Woody Allen nos anos 80. Cecília é a encarnação do indivíduo descontente que não tem forças para levar adiante uma mudança de vida mais radical. O cinema aparece aí como uma arma vital, o lugar onde é possível se entregar ao sonho e acreditar que ele é (ou pode ser, em algum lugar) a realidade de alguém. Ao criticar o comodismo, Woody Allen também louva o poder de “terceirização de problemas” que o cinema tem, mas nos mostra o outro lado da moeda: a ficção não é tão perfeita como nos faz acreditar.

Os conflitos egoicos e as dificuldades que pontuam as relações humanas e amorosas são características que se sobressaem no filme. O aventureiro que desce da tela e apaixona-se por Cecília é tão ou mais complexo do que o ator que lhe deu vida. Seria esse personagem um alter ego dos problemas do ator? Ou seria uma declaração aberta de Woody Allen, como criador de ambos os personagens, projetando-lhes suas emoções, medos e anseios, assim como nós, espectadores, saímos de uma sessão de cinema encantados ou enraivecidos com algo que vimos? Em um dado momento do filme a comédia, o drama e a fantasia mesclam-se para dar conta dos muitos níveis de emoções e projeções que o cinema comporta.

Mia Farrow e Jeff Daniels compensam em altíssimo nível o insatisfatório Danny Aiello, o personagem mais fraco do filme. No tocante ao casal protagonista, uma docilidade afetada (“cinematográfica”) muito bela pontua a relação. Através da fotografia escura de Gordon Willis, o cenário desse romance passa por cores tão intensas ou desbotadas quanto o desenrolar do amor entre eles. O plano médio que mostra pela primeira vez Tom e Cecília próximos um ao outro é uma das composições fotográficas mais comentadas do filme. Quanto mais a burocracia da realidade se impõe, mas desgastado e claramente ridículo se torna o affair entre a protagonista e Tom Baxter, o aventureiro fictício. No entanto, vemos que o mesmo romance fora das telas também não dá em nada. Se nem a ficção nem a realidade podem proporcionar a felicidade, cabe ao indivíduo buscá-la onde mais lhe apraz e é justamente o que faz Cecília quando vai assistir a O Picolino e parece esquecer de todos os seus infortúnios, mergulhando na magia da dança de Ginger Rogers e Fred Astaire, ao som de Cheek to Cheek.

A direção de arte e os figurinos são dois dos melhores setores técnicos do filme, a primeira, por reconstruir com perfeição um bairro suburbano de Nova Iorque nos anos 1920; a segunda, por conseguir diferenciar, sem parecer chocante, os dois mundos trabalhados no roteiro. Com uma objetividade quase dolorosa, chegamos ao final com um misto de emoções e um prazer inexplicável.

A Rosa Púrpura do Cairo”, uma antiga lenda, termina por transformar-se num filme-conto fantástico e impossível, onde a tentativa de fuga da realidade fracassa, mas o amor pela vida ou pelos raros momentos felizes que ela proporciona (mesmo que sejam através de uma película 35mm), compensam todo o sofrimento de se viver. No fim das contas, cinema e realidade compartilham dos mesmos pesares; a diferença é que no primeiro mundo, o fade out encerra todo tipo de esperança: o que não foi mudado, não mudará jamais. No segundo mundo, há sempre a oportunidade de recomeçar e alterar o rumo da história. A semana passada ninguém me amava e agora duas pessoas gostam de mim e são a mesma pessoa!