Cine Matinée
24 de junho de 2019

Filme: Livre

por Gabriela Miranda

 

“Achei que era pra doer daquele jeito”. Esta frase condensa bastante a narrativa de Livre, estrelado por Reese Witherspoon, indicada ao Oscar de melhor atriz por sua interpretação neste filme. Um relato sobre uma andarilha ocasional que abraça uma aventura quando já não tinha mais nada em que se agarrar para manter-se em pé. Quando a pessoa de quem você vem tentando escapar é você mesmo a ideia de se confrontar parece tão intimidante quanto decidir fazer uma trilha de pouco mais de mil quilômetros em cerca de 100 dias. Para iniciar a caminhada Cheryl – representada por Witherspoon de maneira convincente e emocionante – escolhe uma botina apertada demais, o que cabe muito bem no contexto como uma forma de autoflagelação inconsciente.

As queimaduras, os machucados, a gororoba fria em diversas refeições e estados de digestão, tudo isso faz parte do caminho e da história baseada em fatos reais – registrados no livro homônimo – que ela escolheu para alcançar a concretização da dor e desconforto que ela sente internamente, de maneira invisível para qualquer outra pessoa. A sensação de deslocamento e os desafios físicos e emocionais fazem com que ela consiga firmar o passo e continuar. A atuação de Witherspoon é embebida de credibilidade, duramente incentivada pelo diretor francês Jean-Marc Vallée, o mesmo que rendeu nomeações ao Oscar por Clube de Compras Dallas, e agora dirige a história de Cheryl de maneira impecável e com muita intensidade poética e percepção aguçada.

Antes de partir, Cheryl arruma uma mochila monstrona, que parece estar cheia de tudo o que ela vai precisar. Esta mochila é emblemática no filme pelo caráter metafórico e por arrancar algumas risadas da plateia no cinema. Sem ter para onde correr resta seguir adiante, um passo de cada vez, e ir se desfazendo do peso para deixar a carga mais leve e melhorar o desempenho. Mas essa representação material do peso do qual ela se desvencilha vem acompanhada de inúmeras memórias que vão sendo revisitadas e aceitas como parte da história dela, parte de quem ela é, seja ela quem for. De repente ela aprende que ela carregava muita coisa inútil.

Explorar o descobrimento interno é a grande extensão percorrida pela personagem de Witherspoon. Estar acompanhada de si mesma dá vazão a escutar aquilo que ela pensa enquanto está com fome, com sede, com tesão, com contrastes e contraindicações. Essa voz na cabeça dela é conflituosa e por vezes cantarola ou cita algum trecho de livro e também briga para lidar com pensamentos martelando e machucando. Mas o silêncio do deserto afora dá voz para as lembranças gritarem. As boas lembranças vêm sempre acompanhadas da pessoa que deixou mais saudade, mas nem tudo é bonito. Quanto mais ela anda, mais ela entra nos acontecimentos que a levaram para estar ali.

Laura Dern também foi indicada pelo trabalho realizado neste filme, desta vez ao Oscar de melhor atriz coadjuvante. Ela é Bobbi, mãe de Cheryl, e a quem visitamos pelas memórias da protagonista como a origem da força que ela quer desenterrar para chegar até o fim. Dern está muito bem no papel de uma mulher que tenta criar os filhos de maneira alegre e dedicada, mas sem uma identidade própria. Outros personagens tem relevância pontual, mas merecem ser descobertos pelo espectador no escuro da sala de cinema, assim como Bobbi, que tem muito mais a oferecer do que eu ouso comentar para evitar spoilers.

O roteiro de Nick Hornby é muito bem construído para dar o tom das lembranças musicais que desencadeiam as cenas de flash back, desprendidas de uma ordem linear e que puxam a aleatoriedade de acordo com a situação que se apresenta para ela. A trilha sonora é muito bem casada com a narrativa. Usar a música Glory Box fora do contexto sexy em que ela sempre é sujeita nos filmes foi um estranhamento bem-vindo. Entre Walk Unafraid por First Aid Kit, El Condor Pasa (If I Could) de Simon & Garfunkel também fazem parte da trilha. Mas é ao som de I Can Never Go Home Anymore que Cheryl se dá conta de que ela já não tem mais para onde voltar.

A dúvida sobre a razão que fez ela precisar andar por quilômetros a fio consegue engajar o espectador e a resposta foge do óbvio, porque não existe um só motivo. É uma vida cheia de razões boas e ruins e que precisa de um novo caminho, mas pra ganhar fôlego tem de se afastar e se encarar. Este filme traz um relato humano sobre escolhas e consequências, planos e surpresas.

Sem ter um direcionamento para vida dela, Cheryl entra nesse atalho que leva 94 dias até chegar ao ponto que precisava para prosseguir. Ela decide seguir o caminho literal, o visceral, e os triunfos mais banais são comemorados com efusiva alegria, como o fato de conseguir tomar um banho, acender o fogo e não comer gororoba fria, transpor uma barreira criada por uma rocha imensa e outros diversos. O sobrenome escolhido pela própria personagem, Strayed, determina a intenção do trajeto ao mesmo tempo que personifica em si mesma o estado de espírito dela: ser desgarrada, isolada.

A trilha sonora entrega o alívio necessário para aguentar o calendário. O espectador sente o tempo passar como se tivesse acompanhado os 94 dias de questionamentos e rememorações junto com Cheryl e no fim não existe espaço para remorso, apenas a sensação de que dali pra frente existe um futuro com botinas de cadarço vermelho confortáveis.