Cine Fórum
13 de março de 2019

Filme: Maria Madalena

 

Reconhecida como evangelista em 2016 pelo Papa Francisco, Maria Madalena é uma das figuras mais curiosas e misteriosas da Bíblia. A apóstola teria sido a única mulher apóstola de Jesus Cristo e também a primeira pessoa a testemunhar a ressurreição da figura central do cristianismo. Porém, por muito tempo foi considerado como uma “pecadora”, prostituta e até mãe dos filhos de Jesus (o que pode ser visto no livro e no filme A Última Tentação de Cristo), o que as interpretações recentes da Bíblia acabaram negando para restituir a importância da figura religiosa.

Garth Davis, reconhecido por dirigir episódios da série Top of The Lake, criação de Jane Campion, e por fazer o filme indicado ao Oscar Lion: Uma Jornada Para Casa, faz o revisionismo equivalente no cinema em Maria Madalena, onde a história de Jesus Cristo, desde a sua época de pregador até o período em que foi executado pelos romanos por agitação social, é vista pelo ponto de vista de sua mais fiel seguidora: Maria, natural de Magdala (Rooney Mara, de Carol).

Em uma coisa, Maria Madalena lembra Lion: apesar da ambientação chamativa e das atuações coesas, Davis escorrega em todos os vícios possíveis do “cinemão”. Ou como o espectador brasileiro costuma se referir, “parece novela”, fazendo referência a personagens unidimensionais, uso excessivo de música dramática e tensa, diálogos e narrações didáticas… Tudo “enforcando” a encenação, que se chega de início a sugerir alguns momentos mais subjetivos, no seu desenrolar não se resiste a explicar cada pequeno elemento.

De maneira meio desconjuntada, o filme pretende ser político também: a figura principal do filme profere e ouve muitos diálogos de inspirações fortemente feministas que explicam didaticamente a disparidade entre gêneros e o sofrimento feminino à época, não muito diferente do de hoje. E se fosse esse o viés, perfeito. Mas o filme irá se perder bastante entre os pilares políticos, dramáticos e sacros, e no final nenhum deles parece ter qualquer peso real.

Em quase 140 minutos de duração, Maria Madalena começa bem melhor que termina, explorando o dia-a-dia de Maria em Magdala, onde o filme mais se demora ao enfocar seu trabalho como pescadora e parteira, a recusa da personagem pelo casamento arranjado e a tentativa de seu irmão Daniel (Denis Ménochet, de Bastardos Inglórios. Mas com a introdução de Jesus (Joaquin Phoenix, de Ela), o filme sente que precisa cumprir certas obrigações narrativas – já que está trabalhando com a narrativa mais conhecida do Ocidente – e as faz, uma por uma, de maneira um tanto preguiçosa e esvaziada de maior tensão, pulando de cena em cena para cumprir contrato.

De maneira entrecortada, as passagens da Santa Ceia, do Jardim das Oliveiras, da traição de Judas, da via sacra e da crucificação não somam mais que cinco minutos individualmente – seriam o ponto principal da história, que mais afetariam e transformariam a protagonista, mas é apressado e até frio. Se é porque o filme considera desnecessário filmar esses momentos que todo mundo já conhece, é uma pena, porque sempre se poderia dar um novo olhar – e não frequentemente deixar a personagem de “molho” e perdendo momentos importantes do roteiro. Enxergamos a história pelo ponto de vista, mas pouco se tem a sensação que a personagem principal é protagonista de sua própria história.

O roteiro de Helen Edmudsson e Philippa Goslett, em seu segundo ato, nunca mostra Maria Madalena em nenhum conflito interior e pouco sofrendo do que a cerca – o julgamento que uma mulher sofreria por andar acompanhada de homens à época é inexistente, com a personagem sofrendo mais problemas (mas não muito) com o temperamento irascível de Pedro (Chiwetel Ejiofor, de 12 anos de Escravidão) e sua mentalidade guerreira e afrontosa que entram em rota de colisão com a mentalidade pacifista que Maria logo assimila. Fora os dois, o único apóstolo que é desenvolvido – e nesse caso, de maneira muito interessante, é Judas (Tahar Rahim, de O Passado), representado como um idealista sentimental que age com as melhores intenções e que só percebe o próprio erro tarde demais. E é, de fato, o único personagem que tem um arco que o altera. Maria, por contraste, é inabalável.

O trabalho de composição dos personagens é indiscutível. Joaquin Phoenix como Jesus está no melhor estilo do “agitador social”, e por isso mesmo uma das passagens clássicas da história de Jesus que mais recebe atenção é o seu famoso ataque de fúria contra os vendilhões do templo. Mais nervosa nesse momento, a câmera se assemelha um pouco às inúmeras imagens de protesto que tomaram a mídia em tempos recentes. Como catalisador do empurra-empurra, derrubando objetos com tapas e quebrando madeiras com chutes, sendo cercado, empurrado e puxado, nem parece o realizador de milagres solene e estoico que performa milagres no resto do tempo.

Rooney Mara, ao menos quando o roteiro permite, mostra-se ainda tão afiada quanto o era em Millenium – Os homens que não amavam as mulheres e Carol. A atriz, sempre de maneira diferente, consegue combinar fragilidade e força de espírito através de seus silêncios, hesitações e olhares. Muito por conta disso, as cenas de Maria com Jesus não poderiam deixar de ser o ponto alto do filme: tratam-se, afinal, de dois dos melhores intérpretes da nossa geração.

É bem verdade que Maria Madalena tem seus méritos, mas ser recompensado por eles é um exercício de paciência em meio a um filme viciado no dramalhão, com personagens tão resolutos em suas crenças que fica difícil comprar suas dores, tornando-se impossível de se relacionar com qualquer um ali e, no final das contas, qualquer impacto que poderia provocar é diluído por sua história frouxa e, infelizmente, um tanto tímida na abordagem que dá ao que pretende.