21 de abril de 2019

Páscoa: “faz-se noite, no entanto eu canto”

 

“… Maria Madalena vai ao sepulcro, de madrugada,

quando ainda estava escuro…”

(Jo 20,1)

 

Envolve-nos a noite de uma crise global que não afeta a todos de maneira igual: a noite da injustiça, da pobreza, da fome de milhões de seres humanos que provoca migrações massivas; a noite da corrupção e da impunidade; a noite ecológica que ameaça a vida do planeta; a noite da defesa real dos direitos humanos; a noite das grandes utopias; a noite dos conflitos religiosos; a noite do individualismo egocêntrico, da desconexão com os outros e com a Fonte da Vida; a noite da falta de sentido, a noite da ausência de Deus.

Faz-se noite; no entanto, tal como as águas, a noite tem um significado de fertilidade, virtualidade, semente. Como estado prévio, não é ainda o dia, mas o promete e o prepara.

A partir da experiência pascal, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o sepulcro vazio pode causar dúvida, mas ele aponta para a ressurreição; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.

Em meio à noite, a Luz da Ressurreição nos facilita perceber lucidamente nossa própria realidade e aquela que nos envolve, “tal como são”; ela nos mobiliza a cultivar uma consciência lúcida para iluminar os rincões obscuros do nosso interior e do nosso planeta, para fazer visível o lado escondido do mundo e da história. Tal noite pede de nós cultivar uma espiritualidade de olhos abertos, de fidelidade para com a realidade concreta e para com a realidade que ainda está em esperança, em potencialidade para desatar-se.

Para transitar na noite de nosso tempo precisamos buscar na Ressurreição a Luz que a ilumine e nos indique a direção e o sentido de nossa existência.

A noite pede pessoas marcadas pela experiência da Ressurreição, capazes de ver a presença do Ressuscitado no meio das realidades simples e cotidianas, no profundo do coração de cada ser humano, de cada realidade vivente, de cada palmo de nossa terra, no mistério insondável do universo grávido de graça.

Precisamos cultivar não só olhos que vejam a realidade, senão que sejam capazes de contemplar, no meio da noite, a presença da Luz: uma luz que brota das profundezas da realidade, do profundo do ser onde o Deus, fonte de vida, sustenta tudo; uma luz que nos faz descobrir nosso ser essencial: filhos e filhas amados(as) e irmanados(as) com todos e com tudo.

A luz da noite pascal reacende a paixão pela vida, desafio mais urgente de nosso tempo; paixão por toda expressão de vida, especialmente pelas vidas mais ameaçadas. Dar vida foi a paixão de Jesus, expresso nestas palavras: “Eu vim para que todos tenham vida e vida abundante” (Jo. 10,10). Dar vida, protegê-la, curá-la, cuidá-la, defender sua dignidade, denunciar tudo o que a ameaça e lutar contra isso foi o que levou Jesus a perder sua própria vida. Jesus ressuscitou de tanto viver.

Tal é a disposição que hoje precisamos cultivar para iluminar a noite de nosso tempo.

A experiência da Ressurreição nos faz “passar” pela noite e perceber no seu interior os segredos ali escondidos, as surpresas que nos são reservadas. É a experiência da presença da “noite” no ritmo da vida: noite que causa medo, provoca arrepios, impede a visão, paralisa…

Na noite, os objetos e as pessoas parecem impalpáveis, os rostos indefiníveis, o tempo interminável…

Tudo parece igual, confuso, próximo e, ao mesmo tempo, distante, inabarcável, impossível.

Na difícil tentativa de identificar aquilo que está fora, percebe-se mais facilmente a si mesmo ou a própria fragilidade: os passos incertos, as mãos vagantes à procura de um contato, os olhos escancarados no esforço para reconhecer alguma coisa, os ouvidos tensos a escutar o imperceptível, o coração enlouquecido saindo pela boca… Silêncio, desejo, espera, busca, pergunta: tudo flui, trazendo mensagens, ora tranquilizadoras, ora interpeladoras.

No entanto, é durante a noite que se realizam os maiores “mistérios”, aqueles que não são compreendidos, mas que nos fazem compreender, aqueles que não podem ser abarcados mas que nos envolvem.

Pois, para quem tem a coragem de mergulhar na noite, no silêncio, na não evidência, alguma coisa torna-se compreensível, reconhecível, narrável…

Lentamente, o olhar se faz penetrante, o ouvido se faz sensível, o tato se faz delicado e o imperceptível se faz concreto; o longínquo torna-se próximo, o desconhecido torna-se familiar, o extravio torna-se direção, a solidão torna-se companhia, o ignorado torna-se revelação.

A noite é o tempo do mistério e da promessa, é o lugar da espera e da realização, o espaço do desejo e do encontro, da invocação e da revelação, do sofrimento e da paixão, do silêncio e da oração, da vida e da morte…

Na noite o que conta, o que vale não se diz, não se vê, não se sabe: deseja-se, espera-se, recebe-se, realiza-se. Não é um simples eco aquela voz que anuncia no escuro o início do cumprimento de uma promessa que vem de longe e traz luz, festa, alegria, canto…

A fidelidade da promessa ouvida na noite é uma semente. Existe, mas tem necessidade de permanecer escondida. Realiza-se, mas exige habitar espaços de penumbra.

Ainda não é dia, mas amanhece um tempo novo, ressoam como ditas para nós as palavras de Isaías: “Eis que eu farei coisas novas e que já estão surgindo: acaso não as reconheceis” (Is 43,19). É tempo de esperança.

Amanhece uma nova consciência planetária, uma nova espiritualidade, uma nova maneira de intuir o mistério de Deus, uma visão nova do ser humano e do mundo, uma nova mentalidade… Estamos frente uma mudança de paradigma, uma transformação de grandes dimensões: uma nova consciência holística, trans-histórica, trans-pessoal, trans-religiosa. Amanhece uma sociedade global, planetária, heterogênea, descentralizada, um ecumenismo planetário; um novo humanismo, uma nova lógica cultural do movimento, inovação constante…

A pedra que fora removida do túmulo de Jesus indicou a Maria Madalena uma novidade que seu coração buscava, uma novidade que espanta, enche o coração do desejo de procura: “Ele vive”.

O caminho dela em direção ao túmulo é símbolo da coragem de atravessar o escuro da madrugada para ver resplandecer uma nova aurora em sua vida, pela força criadora da única Presença que tudo sustenta, tudo recria e enche de amor. A presença do Cristo Ressuscitado.

Na madrugada da Páscoa, Maria Madalena vai ao sepulcro; ela é símbolo daquela comunidade que se movia entre a luz e a obscuridade. Ainda vive focada no sepulcro (morte); por isso, “ainda estava escuro”. Mas, ao mesmo tempo, começava a clarear (“ao amanhecer”) e a “pedra estava removida” (a pedra da dúvida, da tristeza e da resignação fatalista). Tudo parece anunciar algo definitivamente novo: é “o primeiro dia da semana”; trata-se, nada menos, que de uma nova Criação.

Segundo os evangelistas, as mulheres são as primeiras testemunhas da ressurreição de Jesus Cristo, pois Ele aparece primeiramente a elas. Segundo Tomás de Aquino o motivo desta precedência é porque elas estavam melhor preparadas que os homens para entender e acolher a maravilha da Vida.

E estavam melhor preparadas porque O tinham amado mais.