4 – Santidade primordial x pecados de raiz
“Neste contexto, desejo chamar a atenção para duas falsificações da santidade que poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o pelagianismo.
São duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do cristianismo, mas continuam a ser de alarmante atualidade. Ainda hoje os corações de muitos cristãos, talvez inconscientemente, deixam-se seduzir por estas propostas enganadoras. Nelas aparece expresso um imanentismo antropocêntrico,
disfarçado de verdade católica. Vejamos estas duas formas de segurança doutrinária ou disciplinar, que dão origem “a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar.
Em ambos os casos, nem Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente”
(Papa Francisco, GE n. 35).
Entendemos como “santidade primordial” a força radical da vida, o anseio de viver, a decisão de viver mais intensamente, o impulso expansivo que move a pessoa a sair de si mesma e a entrar em sintonia com os outros. É a “faísca da santidade de Deus” presente no mais profundo do seu ser e que se deixa transparecer no seu modo de viver. Para muitas pessoas, é sua forma habitual de vida; a “santidade primordial” vai se fazendo conatural ao longo da existência.
Queremos com isso dizer que santa é a vida e santo é defendê-la; fascinante é ver grandes esforços para protegê-la e potenciá-la. Ao defender e propiciar a vida a santidade primordial se revela como “humana”, pois santo é “ser humano” por excelência.
Nessa santidade primordial tornam-se presentes as “virtudes” admiráveis, tanto as tradicionais como as novas em tempos de compromisso e libertação: solidariedade, serviço, simplicidade, disponibilidade para acolher o dom de Deus, força no sofrimento, compromisso até o martírio, perdão ao ofensor…
Usamos também o termo “santidade primordial” para contrapô-lo ao termo “pecado primordial” (pecados de raiz”), ou seja, privar de vida, provocar a morte, de modo que ambos os termos se compreendem melhor quando um se refere ao outro.
Fomos criados por um gesto misericordioso, fomos modelados por mãos misericordiosas, idealizados por uma mente misericordiosa, amados por um coração misericordioso.
Se Deus não fosse misericordioso, não teríamos jamais existido; e se essa Misericórdia existe desde o princípio do nosso viver, ela ainda agora é fonte de vida, graça da qual temos continuamente necessidade e que constantemente está agindo em nós para nos reconstruir.
Foi um impulso de misericórdia que nos deu vida; a misericórdia é sempre criativa: ela nos re-cria continuamente e nos impulsiona em direção a uma vida sempre maior.
A Misericórdia é o “Amor que vai além da justiça”, e vir à vida foi fruto de Amor em excesso, não um ato de justiça. Cada dia que passa é uma misericórdia sempre nova, pessoal, criativa.
Mas também discreta e silenciosa. Vivemos imersos na Santidade divina.
Com a “meditação dos pecados pessoais, nós buscamos uma vivência transformante, a partir da experiência do Amor incondicional e da Misericórdia divina, e da descoberta luminosa de uma salvação que se encarna em Jesus. Só a Misericórdia de Deus revela o pecado; Deus nos ama precisamente porque somos pecadores. Este é o maior mistério: “que Ele nos tenha amado primeiro, quando ainda éramos pecadores”
Através do “colóquio de misericórdia” (“que fiz? que faço? que farei por Cristo? EE. 61), descobrimos Cristo no coração do pecado.
O fundamental é fazer uma experiência salvífica frente à “minha história de pecado” e não uma experiência de angústia, de temor e de sentimentos de culpa… Aqui brota um sentimento de surpresa e de admiração diante do contraste entre meu pecado e a Santidade de Deus que me acolhe e me re-cria. Sentimento que desemboca na atitude de “ação de graças”.
Banhados pela “santidade reconstrutora” de Deus, podemos descer em direção à nossa fragilidade e “fazer memória” de tudo o que paralisa nossa vida. A recordação é nossa pessoa, nossa história… através do contraste entre grandeza e pequenez, plenitude e degradação, pecado e misericórdia… e que desemboca numa admiração profunda e intenso assombro (EE. 60). Na oração, procurar captar não tanto os pecados concretos, mas os hábitos, os dinamismos negativos, as atitudes pecaminosas, os ídolos, as áreas fechadas de nossa vida. Há sempre o perigo de permanecermos nos atos externos, esquecendo-nos da dimensão profunda dos pecados.
São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações… que impedem a energia vital, a santidade de Deus fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados por nós mesmos e que interceptam a relação com Deus e com os outros, portanto, com a plenitude da vida, e cortam nossas próprias potencialidades de vida.
Quando falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma conversão radical.
Na exortação apostólica “Gaudete et exultate” o Papa Francisco aponta para dois pecados de raiz na nossa vivência cristã. Em certa medida, os “fariseus” de todos os tempos replicam outros caminhos de santidade: julgam que a santidade é um conhecimento oculto que abre as portas à perfeição, conhecimento esse que está ao alcance de apenas alguns mais elevados – gnosticismo –, ou acreditam que o santo e o perfeito se faz com o seu próprio esforço, distinguindo-se dos pecadores e elevando-se acima destes por acumulação de um crédito de merecimentos – pelagianismo.
A santidade, portanto, não é uma qualidade física ou moral. Não é fruto de um esforço próprio. É preciso enfatizar antes de tudo essa iniciativa de Deus para não sermos vítimas destas duas falsificações da santidade que poderiam extraviar-nos. São erros antigos, mas representam perenes perigos à fé; são vistos como obstáculos à santidade porque retiram o lugar do mistério e da graça, concentrando-a na experiência privada ou no esforço individual.
Santo não é antónimo de pecador: santos são os pecadores que não desistem. Assumirmo-nos pecadores não é um exercício para diminuirmos ou vitimizarmos: trata-se de aceitar a nossa condição de frágeis e carentes, de “amados sem porquê” e, por isso, capazes de amar.
Que oportuno saborear na GE a humildade – termo que vem de húmus, o chão que pisamos e onde a semelhança é fecunda porque espaço de cuidado.
A santidade parte de baixo, do chão da vida; trata-se de uma descida progressiva a caminho de uma radical humildade: quem quiser ser o primeiro, seja o último, o servidor de todos; quem se exalta será humilhado, quem se humilha será exaltado.
Trata-se de um esvaziar-se progressivo de toda auto-suficiência e orgulho, de toda ambição, de prestígio e projeção, de poder e dominação… no seguimento de Jesus.
Os pecados de raiz fecham a pessoa sobre si mesma e a impedem de amar, de ser santa. A humildade é o reconhecimento pacífico da própria condição de criatura pecadora e frágil, mas amada por Deus; é a porta para a santidade, isto é, para poder amar os irmãos pecadores e frágeis como somos amados, embora pecadores e frágeis.
Textos bíblicos: Mc 7,14-23; Num 21,4-9; Sab 11,21-26; Gen 9,8-15; Ez 36,22-36
Na oração: Diante da Santidade de Deus deixe que ela desvele os “pecados de raiz” que envenenam o coração e rompem as relações de filiação e de fraternidade.
Ao mesmo tempo, a Santidade de Deus ativa e alimenta a “santidade primordial” presente no coração.
Conversão: travessia dos “dinamismos de morte” para os “dinamismos de vida”.