10 – As ‘afeições desordenadas’
atrofiam o dinamismo da santidade
“O Evangelho convida-nos a reconhecer a verdade do nosso coração, para ver onde colocamos a segurança da nossa vida. Normalmente, o rico sente-se seguro com as suas riquezas e, quando estas estão em risco, pensa que se desmorona todo o sentido da sua vida na terra. O próprio Jesus no-lo disse na parábola do rico insensato, falando daquele homem seguro de si, que – como um insensato – não pensava que poderia morrer naquele mesmo dia.” “As riquezas não te dão segurança alguma. Mais ainda: quando o coração se sente rico, fica tão satisfeito de si mesmo que não tem espaço para a Palavra de Deus, para amar os irmãos, nem para gozar das coisas mais importantes da vida. Deste modo priva-se dos bens maiores. Por isso, Jesus chama felizes os pobres em espírito, que têm o coração pobre, onde pode entrar o Senhor com a sua incessante novidade”
(Papa Francisco, GE nn. 67-68)
O seguimento de Jesus não é só questão de inteligência; é questão de paixão, de sedução, de afeto, de coração, de atração… “Quê paixão move o meu coração?”
Parece ser de uma evidência fundamental que os Exercícios devessem começar por colocar “ordem” na desordem da afetividade. Na dinâmica dos Exercícios, o exercitante percebe uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, status, ídolos, dependências…. que somada a outras, passa a constituir uma estrutura de “maus afetos” (“afetos desordenados”).
Os Exercícios, nesse sentido, são uma estratégia para “ordenar os afetos”, libertar-se dos afetos desordenados e assim poder percorrer o caminho da santidade mais profunda: aquela centrada em Deus, leve e cheia de graça, uma aventura…
Trata-se, em primeiro lugar, de retirar as “cargas afetivas” daqueles objetos sobre os quais tinha-se investido anteriormente e iniciar (“buscar”) um processo de novo investimento e encontrar (“achar”) um novo objeto (a Vontade Divina).
O caminho da santidade é, segundo o papa Francisco, transfigurar o cotidiano, resgatar em meio ao ordinário o extraordinário. É também vigiar constantemente e estar atento às armadilhas que aparecem a cada momento da vida e superá-las inspirados pela experiência de sentir-se conduzido pela Santidade de Deus e amar e as opções fundamentais que daí decorrem. É discernir constantemente não entre o bem e o mal, mas entre o bom e o melhor. Assim as opções vitais qualificarão a existência, não deixando que esta seja arrastada pelas “afeições desordenadas” que a tornam pequena e estéril.
Na verdade, o que o Papa afirma, ousadamente, é que a santidade é um chamado para todos; é um caminho para todo ser humano que não se conforma com este mundo e entende que deve fazer o possível para transformá-lo e humanizá-lo. É uma vocação para todo aquele ou aquela que não aceita que sua vida tenha que resumir-se a satisfazer pulsões, buscar sensações efêmeras e contentar-se com gratificações superficiais que se desvanecem rapidamente deixando gosto amargo e frustrante na boca e no coração.
De onde vem a o instinto de posse e de cobiça? Onde se encontra a raiz das “afeições desordenadas?
Podemos dizer que o coração do ser humano é feito de “matéria nobre” e de profundas “carências existenciais”. Sua matéria nobre provém de sua capacidade de amar, de sua disposição à comunhão, de sua abertura à transcendência, da vivência da santidade humanizadora.
Suas “carências” provém de sua limitação e fragilidade enquanto criatura. Essas “carências” do coração tomam o nome de insegurança, temor, desconfiança, medo do futuro, da morte…
Quê saída buscar diante da ferida existencial, da insegurança do próprio eu, da indigência do coração?…
Para muitos, o que acalma e apaga a angústia existencial é a riqueza. Ao se cercarem de muitos bens (sejam materiais, como dinheiro, posses… ou espirituais, como as qualidades pessoais e os saberes), acaba-se toda insegurança, todo medo, qualquer tipo de angústia. Trata-se de um engano nada evidente.
O mal radical está, portanto, na “insaciável cobiça do coração pervertido”.
O engano acontece quando o coração se apega “pulsionalmente” às riquezas até depender delas; nesse caso, elas deixam de ser mediações do Reino para se converter em ídolos do próprio coração. Deles se espera a salvação, e não dos outros e nem de Deus.
O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob os próprios pés.
Mais ainda: a riqueza é algo mais do que solo firme e apoio; é carapaça protetora, é um objeto interno, corpo do corpo, ou coisa com a “qualidade do eu”. A dinâmica acumulativa, possessiva, própria do apego aos bens, possui toda a força do narcisismo e da auto-afirmação infantil.
Esta carência existencial é reforçada pelo ambiente no qual vivemos, marcado pelo consumismo; continuamente escutamos dizer que a pessoa vale quando se apropria e acumula bens e riquezas. Nesse ambiente, cada um vai alimentando uma espécie de ego, vivendo centrado em si mesmo e separado do resto do mundo. Tal ego é possessivo e manifesta-se como um desejo insaciável de dinheiro e de bens.
Esse ego centrado em si próprio não confia em ninguém a não ser em si mesmo. É essa falta de confiança que torna a pessoa tão insegura, cheia de medo, preocupações e ansiedades.
O ego não ama ninguém além de si, atendendo apenas às suas próprias necessidades e à sua própria gratificação. Sofrendo de uma falta total de compaixão ou empatia, ele pode ser extraordinariamente cruel para com os outros. Ele não se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o desumaniza, esvaziando-o de todo dignidade. Aumenta seus celeiros, mas não sabe ampliar o horizonte de sua vida. Aumenta sua riqueza, mas diminui e empobrece sua vida. Acumula bens mas não conhece a amizade, o amor generoso, a alegria e a solidariedade. Não sabe compartilhar, só monopolizar.
Finalmente, acaba-se por criar uma dura cortiça que defende e isola a pessoa do entorno e que a aliena numa insensibilidade para com tudo aquilo que não seja sua própria realidade. É uma espécie de “embriaguez” na qual a alteridade desaparece.
É necessário, antes de avançar nos Exercícios, detectar os condicionamentos afetivos que de fato limitam a liberdade da pessoa, atrofia o impulso da santidade e esvazia o compromisso com os outros.
A meditação dos “três grupos de pessoas” (EE 149-157) pretende mobilizar o exercitante para que enfrente as amarras que procedem de seu próprio mundo interior.
O que está em jogo nos Exercícios é chegar a conhecer-se profundamente encontrando a raiz do próprio ser nos afetos desordenados.
Esse conhecimento interior, profundo, é condição indispensável para poder dispor de si, em maturidade de liberdade. Sem pôr ordem nos afetos o ser humano não é verdadeiramente livre e não entra no fluxo da santidade divina. Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores (Mt 6,24; Lc 16,13).
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar o “dinheiro”, a acumulação que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração…
Como evitar que o nosso ego determine nossa vida e trave o fluxo da vocação à santidade?
O primeiro passo será desvelar e desmascarar nosso ego com todas as suas maquinações e dubiedades.
O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo o Evangelho a pessoa cresce e se enriquece na entrega e na desapropriação, no encontro e na partilha. Porque só assim deixa refletir a luz da santidade de Deus. Nisso consiste também em ser “rico para Deus”.
Na criação da “nova comunidade” dos seguidores de Jesus, a partilha substitui a acumulação e a abertura aos outros se apresenta como alternativa às relações interpessoais de opressão e exclusão; aqui está configurada uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
Na partilha, a primitiva tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e benevolente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, há superabundância.
A resposta cristã é “viver como Jesus”: viver confiados nas mãos providentes do Deus Pai/Mãe, buscando o Reino-Uto-pia como o mais principal. “O resto virá por acréscimo”.
A verdadeira riqueza é investir numa única fortuna: a do amor, do favorecimento da vida, a do descentramento de si mesmo, a da santidade solidária em favor dos mais pobres e desfavorecidos.
Textos bíblicos: Lc 12,13-21; Mc 10,17-31; 1Tim 6,3-10; Lc 9,57-62
Na oração: Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como “verdade” de solucionar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. Há coisas que são mentira, mas que aparecem como verdade; aí se enraíza seu atrativo.
– quê paixão move o seu coração? seu coração está livre?; meus afetos estão ordenados?
Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens… que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos desejos, de nossa vontade, de nós mesmos…
– quê “apegos” estão travando o fluir de sua vida e impedindo-lhe aderir a Cristo incondicionalmente?
Santidade: capacidade ilimitada de paixão.
Bem-aventuranças: rosto visível da santidade
“O Justo e Santo entregou-se em nossas mãos”
Santidade: presença alegre da consolação
Ad Amorem: santidade agradecida que desperta novo ânimo