22 – “Retrato” de S. Inácio, segundo Antônio Vieira
“Enfermo Inácio, e já nos últimos dias da vida, veio a visitá-lo seu grande devoto, o eminentíssimo cardeal Pacheco, e trouxe consigo um pintor insigne, o qual, de parte donde visse o santo e não fosse visto por ele, a furto de sua humildade, o retratasse. Põe-se encoberto o pintor, olha para S. Inácio, forma ideia, aplica os pincéis ao quadro e começa a delinear-lhe as feições do rosto.
Torna a olhar (coisa maravilhosa!); o que agora viu, já não era o mesmo homem, já não era o mesmo rosto, já não era a mesma figura, senão outra muito diferente da primeira.
Admirado, o pintor deixa o desenho que tinha começado, lança segundas linhas, começa segundo retrato e segundo rosto. Olha terceira vez (nova maravilha!), o segundo original já tinha desaparecido, e Inácio estava outra vez transtornado com novo aspecto, com novas feições, com nova cor, com nova proporção, com nova figura.
Já o pintor se pudera desenganar e cansar, mas a mesma maravilha o instigava a insistir. Insta repetidamente, olha e torna a olhar, desenha e torna a desenhar, mas sendo o objeto o mesmo, nunca pode tornar a ver o mesmo que tinha visto, porque quantas vezes aplicava e divertia os olhos, tantos eram os rostos diversos e tantas as figuras novas em que o santo se lhe representava.
Pasmou o pintor e desistiu do retrato; pasmaram todos vendo a variedade de desenhos que tinha começado, e eu também quero pasmar um pouco à vista deste prodígio.
S. Inácio nunca teve dois rostos, quanto mais tantos. Foi cortesão, foi soldado, foi religioso, e nunca mudou de cores nem de semblante.
Pois se Inácio teve sempre o mesmo rosto, cortesão, soldado, religioso, se teve sempre e conservou o mesmo semblante, como agora se transfigura em tantas formas? Como se transforma em tantas figuras, quando querem copiar o seu retrato? Por isso mesmo. Era Inácio um, mas semelhante a muitos, e quem era semelhante a muitos, só se podia retratar em muitas figuras.
Ninguém pôde retratar a Santo Inácio, como vimos, mas só S. Inácio se retratou a si mesmo. E qual é o verdadeiro retrato? Qual é a verdadeira efígie de S. Inácio?
A verdadeira efígie de S. Inácio é aquele livro de seu Instituto que tem nas mãos. O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. O corpo retrata-se com o pincel, a alma com a pena.
E assim como Deus se retratou no livro das suas Escrituras, a si Inácio se retratou no livro das suas. Retratou-se Inácio por um livro em outro livro. O livro das vidas dos santos foi o original de que S. Inácio é cópia; o livro do Instituto da Companhia é a cópia de que S. Inácio é o original.
S. Inácio, se bem se consideram os princípios e fins de sua vida, foi o fruto do Flos Sanctorum. O Flos Sanctorum era a flor, S. Inácio foi o fruto. Se de todas as flores se compusesse uma só flor, esta flor havia de ter o cheiro de todas as flores; e desta flor nascesse um fruto, este fruto havia de ter os sabores de todos os frutos. E esta maravilha fez Deus em S. Inácio. O livro foi a flor, ele o fruto; um fruto que contém em si todos os sabores; um santo que sabe a tudo o que cada um deseja e há mister.
Tudo o que quiserdes, tudo o que desejardes, tudo o que houverdes mister, achareis neste santo, ou neste compêndio de todos os santos.
Essa foi a razão porque ordenou a Providência divina que concorressem e se ajuntassem neste grande exemplar tanta diversidade de estados, de exercícios, de fortunas. Nasceu fidalgo, foi cortesão, foi soldado, foi mendigo, foi peregrino, foi preso, foi estudante, foi graduado, foi escritor, foi religioso, foi pregador, foi súdito, foi prelado, foi legislador, foi mestre de espírito, e até pecador foi em sua mocidade; depois arrependido, penitente e santo.
Para quê? Para que todos achem tudo em S. Inácio: “Fiz-me tudo para todos” (1Cor 9,22).
O fidalgo achará em S. Inácio uma ideia da verdadeira nobreza;
O cortesão, os primores da verdadeira polícia; O soldado, os timbres do verdadeiro valor.
O pobre achará em S. Inácio que o não desejar é mais certa riqueza;
O peregrino, que todo o mundo é pátria; O perseguido, que a perseguição é o caráter dos escolhidos;
O preso, que a verdadeira liberdade é a inocência;
O estudante achará em S. Inácio o cuidado sem negligência;
O letrado, a ciência sem ambição; O pregador, a verdade sem respeito;
O escritor, a utilidade sem afeite (enfeite).
O religioso achará em S. Inácio a perfeição mais alta; O súdito, a obediência mais cega;
O prelado, a prudência mais advertida;
O legislador, as leis mais justas.
O mestre de espírito achará em S. Inácio muito que aprender, muito que exercitar, muito que ensinar, e muito para onde crescer.
Finalmente o pecador, por mais metido que se veja no mundo e nos enganos de suas vaidades, achará em S. Inácio o verdadeiro norte de sua salvação; achará o exemplo mais raro da conversão e mudança de vida; achará o espelho mais vivo da resoluta e constante penitência e achará o motivo mais eficaz da confiança em Deus e na sua misericórdia, para pretender, para conseguir, para perseverar e para subir ao mais alto cume da santidade e graça, com a qual se mede a glória”.
(Antônio Vieira – SERMÕES, Vol. I, Sermão de S. Inácio, pp. 257-301,
Ed. das Américas – SP- 1957)
Comentário
Pe. Vieira empenha-se em contar-nos uma história apócrifa, cujo argumento é precisamente a impossibilidade de reproduzir a imagem de S. Inácio, a incapacidade de captar sua “verdadeira efígie”.
Quê pretende dizer-nos o pregador?
Aonde quer levar-nos com esta história peregrina?
É como se ele nos dissesse: “busque cada um sua imagem de S. Inácio, imagine-o como queira ou como possa, pois o único lugar onde agora cabe encontrá-lo é a imaginação”.
Vieira demonstrou o limite da devoção estética ou a impossibilidade de encontrar o original inaciano naquilo que, em verdade, não passa de auto-projeção: onde deveria figurar a forma inaciana cada um coloca o retrato que lhe gostaria contemplar.
No entanto, Vieira vai expor ao seu auditório que ainda é possível ter acesso ao verdadeiro Inácio, vai mostrar que, para além da imaginação estética, existe um caminho que nos situa diante do “retrato”.
Vieira, sem avisar, mudou de cenário. Onde estava o quadro, coloca um livro. Onde estava o pintor, aparece o leitor. A mudança de cenário é, na realidade, uma mudança de registro mental. Onde acaba o retrato impossível, começa a interpretação.
O livro, o texto, é o lugar de encontro verdadeiro entre Inácio que desapareceu para sempre e o leitor ou os leitores que o buscam.
A transmutação que Vieira nos mostra é dupla: exige renunciar a imagem de Inácio; exige também renunciar à própria imaginação, criadora de imagens.
O verdadeiro Inácio deverá ser sempre decifrado em sua escritura.
E para que isto aconteça, quem deseja ver a Inácio deverá transformar-se em seu leitor.
Só a leitura é capaz de realizar o que a pintura não conseguia: que o que nunca era o mesmo, pode ser ele mesmo.
Inácio-livro abre a possibilidade de que as diferentes perspectivas espaço-temporais dos leitores do livro não se reduzam a simples projeções de sua imaginação e seu desejo.
A leitura e a interpretação educam a imaginação e o desejo dos diferentes buscadores de Inácio; educam para que possa aparecer a “interatividade” do texto de Inácio.
Ler assim, é deixar-se retratar a si mesmo no espelho do texto.
Como Vieira dirá, encontrar Inácio é “encontrar o espelho mais vivo”.
Ler é descobrir que para conhecer Inácio, ou para vê-lo, tenho que deixar-me ver por ele, nele.
É minha vida onde a verdadeira efígie de Inácio pode aparecer-se a mim, graças aos efeitos que sua escritura produz em mim; graças à transformação que a leitura vai operando na compreensão de mim mesmo, fazendo-me saber o que sem ela nunca conheceria.
Não se trata de decifrar a vida do autor de um texto, nem de decifrar o texto.
Trata-se de que o leitor decifre sua própria vida graças ao texto no qual, como num espelho, se reflete. Por isso Vieira escreverá ao final de seu sermão que S. Inácio “é um fruto que contém em si todos os sabores”.
(cf. Ulpiano Vazques, revista Manresa – 1997)