24 – Espiritualidade do cotidiano criativo
“Minha vida cotidiana é meu guru”
(monge anônimo)
Vivemos mergulhados na cultura de resultados; o ativismo é o nosso estilo de vida; a existência inteira faz-se maquinal e rotineira; a vida perde seu sentido; já não encontramos tempo para desfrutar das atividades mais simples e humanas; nosso cotidiano torna-se pesado, cansativo… passa a ser rotineiro, convencional e, não raro, carregado de desencanto. A maioria das pessoas vive restrita ao cotidiano com o anonimato que ele envolve. Tal situação acaba gerando pessoas ansiosas, irritáveis, frustradas…
Que fazer então?
Quando a vida cotidiana se torna monótona e se faz “normal”, é necessário sacudi-la com algum “detalhe anormal”, que ajuda a revigorá-la e dar-lhe fecundidade. “Se, às vezes, há um fastio na rotina, não raro ela revela um mistério insondável” (F. Cláudio).
A mística inaciana desperta nossa atenção para o mistério das pessoas, das coisas, da normalidade da vida… S. Inácio, quando nos convida a contemplar a “vida oculta” de Jesus, no fundo ele quer que coloquemos em evidência nossas motivações, nossos valores, nossos critérios…
Jesus nos ensina, em Nazaré, a descobrir o valor eterno do doméstico, do cotidiano; Ele nos ensina a saborear o eterno e o Absoluto nas pausas e nos silêncios da vida cotidiana.
Ele gasta praticamente toda sua vida nesta humilde condição; passou desapercebido como Messias.
Identificando-se com a vida de todo mundo Jesus mostrava que a salvação não consistia em coisas extraordinárias ou em gestos fantásticos, mas na “adoração do Pai em espírito e verdade”.
Tanto em Nazaré quanto na vida pública, Jesus nos comunica uma profunda união com o Pai.
Para Ele o Reino se revela no pequeno, no anônimo, no cotidiano e não no espetacular, no grandioso.
Para Ele, não são as coisas que nos fazem importantes, mas somos nós que fazemos qualquer coisa ser importante. É o sentido que damos à nossa vida e à nossa ação que fazem com que estas sejam significativas ou não. É a “importância do não importante”.
“Não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. Basta a cada dia a própria dificuldade” (Mt 6,34). Com estas palavras, Jesus estabelece a diferença entre o modo pagão e o modo cristão de viver o cotidiano. A “cotidianidade” de nossa vida está tecida de coisas “ordinárias” e não de coisas “extra-ordinárias”. Falamos de uma cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária, que embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação e um modo de fazer-se que não se deve à mera casualidade ou a um impulso instintivo de repetição e automatismo.
O cotidiano é o que vivemos e/ou fazemos cada dia: o conjunto de circunstâncias, atividades e relações que formam a trama da vida de uma pessoa por meio das quais Deus atua nela e a pessoa se relaciona com Deus.
As “ações cotidianas insensatas” podem ser “sensatas” se percebermos Deus presente nelas. Descobrir a presença divina escondida no cotidiano é encontrar-se acolhido pelo abraço do Criador que nos envolve. Quando a pessoa assume seu cotidiano e o vivifica com injeções de novidade, de idealismo, de criatividade… então começa a irradiar uma rara energia interior.
A essa força denominamos de carisma, que significa a energia que tudo vitaliza, que tudo penetra e rejuvenesce. O carisma inaciano nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos, descobriremos que o cotidiano guarda segredos, novidades, mensagens ocultas… que podem acordar e conferir sentido e brilho à vida. O cotidiano passa a ter sabor de eternidade.
O cotidiano é o “meio” pelo qual o amor toma densidade e se expressa preferentemente. Tem-se dito que “a humildade do amor é o dom da vida cotidiana”, ou seja, a humildade do amor sem “brilho”, no escondimento. O amor é, precisamente, o lubrificante que dá sentido à vida cotidiana e lhe faz superar as dificuldades inerentes à mesma: o desprendimento de si mesmo, a busca da verdade e do bem comum, a atenção ao que facilita a vida dos outros… se tornam “normais” quando se cultiva o amor.
“O amor deve consistir mais em obras do que em palavras” (EE. 230).
E é esta fidelidade no cotidiano que possibilita a transformação da realidade.
Textos bíblicos: Mt 6,25-34; Lc 2,39-52; Lc 10,38-42.
Na oração: O Espírito nos faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana.
Descubra, diante de Deus, o significado da vida cotidiana mais simples (trabalho, família, relações…). Você “apalpa” a presença de Deus nas rotinas diárias?