23 – Espiritualidade do trabalho
“Considerar como Deus por mim trabalha e age em todas as coisas criadas…”.
EE. 236
Uma pessoa deve identificar-se com aquilo que faz. Não devemos considerar o trabalho que fazemos como se fosse estranho, como algo fora de nós que nos agrada ou desagrada, que nos atrai ou nos causa repulsa. Podemos considerar nosso trabalho como uma extensão de nós mesmos, de nossa mão, de nossa mente, de nosso coração… Não é isso que dizemos do pincel usado pelo pintor e do cinzel empregado pelo escultor? São instrumentos valiosos que se encaixam nas mãos do artista e obedecem à sua imaginação, quase como se fossem partes de seu próprio corpo. E aí nasce a obra de arte.
S. Inácio aconselha: “esta é a primeira regra de ação: confia em Deus, como se tudo dependesse exclusivamente d’Ele, e ao mesmo tempo trabalha como se tudo dependesse somente de ti”.
O fundamento do ser humano não é o seu trabalho, sempre limitado e pobre, mas o amor criativo e redentor de Deus que se expressa em seu trabalho. O ser humano “é criado… e é criativo”; ele se realiza no trabalho e Deus pôs a Criação nas mãos dele para que a aperfeiçoasse e a levasse à plenitude.
É no trabalho que a pessoa encontra o sentido de sua vida e o modo de colaborar com o bem-comum.
S. Inácio tinha um pequeno costume cheio de sabedoria e de psicologia. Ao ir de um lugar a outro, ou antes de começar qualquer atividade, ele parava e perguntava-se a si mesmo: para onde vou e para que? o que vou fazer? para quem vou fazer?
Essa é a retidão e a pureza de intenção no nosso trabalho cotidiano: “buscar a Deus por si mesmo e alegrar-se na ação”.
Nesse sentido, aquele trabalho pesado, arrastado, sem muito sentido… de repente fica leve, transparente e carregado de utopia.
Deixa se ser “tri-palus” (instrumento de tortura) para ser “poiesis” (poesia), ou seja, entusiasmo criador, inspiração, intuição…
“É poeticamente que o ser humano habita a terra” (F. Holderlin).
O ser humano contempla aquilo que a Terra estende à sua frente; e, lá de dentro, a voz do amor e dos valores lhe diz que a realidade pode ser transformada. Aí entra a imaginação, a criatividade… e começa a explorar possibilidades ausentes, a montar fantasias… Aos duros materiais à sua volta ele mistura o desejo e o amor… re-cria o mundo.
Como se fosse aranha, o ser humano constrói o seu mundo a partir de suas próprias entranhas.
Na “Contemplação para alcançar Amor” (3º ponto), S. Inácio pede para considerar como Deus trabalha por nós, preparando pessoalmente todos os dons. A presença de Deus no mundo é ativa e dinâmica: Deus ama atuando em nossa história. Tudo está sendo construído e reconstruído por Deus. Deus trabalha em todas as coisas. Ele é a força inesgotável de onde brota todo o trabalho do mundo. Deus continua fazendo tudo novo. Diante do “Deus trabalhador” o ser humano responde com um trabalho criativo; ele se sente chamado a trabalhar a serviço do Senhor, para sua maior glória.
Esta é a espiritualidade da colaboração, ou seja, o trabalho é a colaboração do ser humano ao Deus trabalhador; pelo trabalho a pessoa está louvando o Pai, está salvando o mundo e está crescendo em graça.
Louvor sem trabalho é alienação; trabalho sem louvor é escravidão.
Para S. Inácio e sua espiritualidade, Amor é serviço, é trabalhar com Deus na mesma direção.
Trabalho que se faz com amor; amor é servir, trabalhar: trabalhar com a mesma intenção de Deus, fazendo as mesmas obras que Deus está fazendo, ou seja, aperfeiçoando a Criação.
A identificação entre amor e trabalho é encontrada no mesmo Deus, que é Criador porque é Amor.
Encontramos aqui o fundamento para uma teologia do trabalho: o fazer, seja qual for, é redentor, se a motivação é evangélica, se ele está orientado para o Reino. Não é o trabalho que nos faz importantes, mas somos nós que fazemos qualquer trabalho ser importante, quando ele é realizado na perspectiva do Reino. Todo trabalho é nobre, seja ele o de cinzelar estátuas ou o de esfregar o chão.
A alegria do trabalho está no fato de perceber o sentido e a intenção presentes nele. O que importa é a atitude. E a atitude que ajuda e que salva é fazer o que precisa ser feito, com entrega sincera àquilo que se faz. A identificação com aquilo que fazemos é o caminho para a paz interior.
Textos bíblicos: Mt 20,1-16; Mt 21,28-32; 2Tes 3,6-12; Jo 5,10-18.
Na oração: Dar sentido de amor e profundidade ao trabalho diário; através do trabalho, servir a Deus por puro amor.