“Será um Deus cristão o deus dos cristãos?”
“Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra ‘amor’”
(C. Lispector)
Para relacionar-nos humanamente com o Deus que Jesus nos revelou, o mais urgente que devemos fazer é quebrar as “falsas imagens” d’Ele que carregamos em nossas consciências, em nossa intimidade mais secreta. E a primeira e principal imagem falsa é que Deus é uma ameaça da qual devemos nos proteger.
De fato, a presença de Deus na vida e na história de muitas pessoas é vivida secretamente sob as vestes do temor e do medo. Um “Deus” que a todos pedirá contas no juízo, onde teremos de responder pelo mau uso de nossos dons; um “Deus” que nos castiga com desgraças, por causa de nossos fracassos; um “Deus” interesseiro, um ídolo que nos amarra e não nos deixa viver, que impõe obrigações duras e difíceis; um “deus-patrão” que nos prende com contratos e cobranças; um “Deus” que é um constante perigo, causador do Grande Medo que nos paralisa.
Diante desse “Deus” é impossível “amá-lo de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento”.
No entanto, a fé não se fundamenta jamais a partir do medo, nem se confunde com modos fechados de viver, com fixação legalista; ela é busca, iniciativa, aventura, correr riscos… Assim, passamos a nos relacionar com Deus, cuja presença na História não nos proíbe de construí-la, mas nos empurra em favor da transformação deste mundo.
Só assim poderemos recuperar a confiança no Deus que nos olha com ternura e viver a partir do amor que afasta todos os medos. De fato, “no amor não existe medo; pelo contrário, o amor perfeito lança fora o medo…; quem sente medo ainda não está realizado no amor” (1Jo 4,18).
A verdadeira “experiência espiritual” é estabelecer com o “Deus da Vida” uma relação “desinteressada”, isto é, uma relação na e a partir da gratuidade; é passar do “Deus mérito” ao “Deus do dom”, do “Deus juiz” ao “Deus Pai-Mãe”, do “Deus ameaça” ao “Deus amor” que nos acolhe em nossa vulnerabilidade e fragilidade…
Jesus pinta um rosto de Deus que a sabedoria humana não pode entender. Deus não faz contabilidade; não soma nem virtudes e nem pecados. Ele não está acima de nós cobrando, mas abaixo, desafiando, fortalecendo e sustentando nossa vida. Esta percepção de Deus todo Gratuidade nos faz mergulhar na dinâmica da Graça, nos revela um Deus que nos quer porque somos criaturas suas. E basta!
Assim é o amor: não tem “porquês”, “sem-razões”. Ama porque ama.
Com um Deus assim acabam-se os ressentimentos, as violências interiores, os sacrifícios, os sentimentos de culpa… Morre o “deus” das proibições, das ameaças, dos castigos e da perpétua vigilância sobre nossos atos e intenções… Desaparece a fé imatura e farisaica que injeta no nosso interior o carcoma da culpa, da dívida, do medo, do remorso…
O Deus-Pai de quem nos falou Jesus se manifesta como permanente surpresa; com sua presença amorosa e compassiva, nos descentra e nos lança a fazer a “travessia”, dinamizando-nos com sua Graça para “amar” com Ele na mesma direção.
A questão não é saber sobre Deus, mas sentir o Deus que se funde com nossa vida e em nossa história.
O Deus em quem cremos, por ser mais amor que poder, é um Deus fonte da vida, que por nós é acolhida com gratidão. Não é, portanto, o Deus que se revela ciumento e rival do ser humano, mas amante da alegria e da festa. “Deus é festa”.
Se, para “amar a Deus de todo o coração” é preciso afastar-nos do “humano”, do “natural”, da “realidade”, significa que estamos longe da compreensão do Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Do mesmo modo, quando nos envolvemos nas atividades humanas, seja o trabalho, o descanso, o prazer da vida, e não estamos em relação com Deus, isso significa desconhecer e inclusive negar o mais original e o mais específico do Deus revelado por Jesus.
Porque, o ponto de encontro entre Deus e o ser humano, não é a evasão do humano e, menos ainda, o conflito com o humano, mas o fruto de humanização que se concretiza na superação e aniquilação de tudo o que de inumano há em cada um de nós.
“Deus é amor” (Jo 4,8.16). Esta afirmação perpassa, carregada de mistério e de promessa, toda nossa história; nela se toca o coração mesmo do cristianismo. É expressão nuclear, irradiante. Ela sozinha já seria capaz de manter a esperança no mundo. Espreitar sua profundidade significa apalpar seu mistério, encontrar a chave do sentido, chegar à fonte da vida.
Pois o Deus que vem ao encontro do ser humano é amor sem medida e não seu rival; se o cristianismo tem um sentido, este consiste em tornar mais leve para a humanidade o peso da existência.
O dinamismo mais certo e mais íntimo da experiência cristã indica que o mistério de Deus em sua relação com o ser humano, longe de abrir um espaço obscuro de temor, vence sempre pelo lado do amor e se traduz, infalivelmente, em maior bem e em mais firme esperança para o ser humano.
O amor nasce em Deus como um rio imenso que envolve o ser humano, iluminando e transformando sua existência. O cristão não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandatos alheios a seu ser. O que lhe é pedido consiste, justamente, no que previamente é oferecido a ele: ele é chamado a ser o que é: livre e capaz de corresponder ao amor.
O amor que Deus tem pelo ser humano é perfeitamente desinteressado, gratuito e livre. Deus invade sua vida, banhando-a toda de seu amor. Não é o ser humano que é amável; é Deus que é amor. Esse amor é absolutamente primeiro, ativo e criativo, absolutamente livre: não é determinado pelo valor de quem Ele ama.
A pessoa encontra-se, assim, envolvida pelo amor de Deus.
Esse amor, ativo e primeiro, suscita nela a gratidão que a leva a corresponder com um amor-serviço. A paixão por Deus implica compaixão pelo ser humano.
Característica desse amor: voltado para o serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”.
Textos bíblicos: Mt 22,34-40
Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.