24 – Silêncio
Frei Betto – “O canto da fogueira”
“A solidão é um momento fundamental na prática do cristão. Sem ela a pessoa se mascara, se aliena, se deixa corroer pela viscosidade dos interesses mesquinhos, se dilui no diz-que-diz, se afoga na banalidade, se perde em superficialidade, se desintegra espiritualmente de tal modo que nosso interior fica um imenso vazio e essa vacuidade, tão comum à solidão dos que permanecem fechados em si mesmos, é que gera a angústia e o desespero.
A solidão pode significar demissão enquanto a buscamos para fugir dos outros e das responsabilidades que nos aguardam. Então ela traz, ao covarde, o lúgubre consolo da opacidade de seus gestos e pensamentos.
Mas por outro lado, ela é indispensável ao homem e à mulher engajados, por mais ativa e atribulada que sejam suas práticas.
A solidão os impede de serem tragados pelo ativismo que põe em risco a própria eficácia da luta e proporciona o recuo necessário à visão de conjunto, à crítica e à autocrítica.
Sem ela o entusiasmo pode conduzir ao fanatismo, o poder à prepotência, a fé ao fetichismo e ao ritualismo. Nela, ao contrário, o homem e a mulher se abastecem, recuperam suas energias criativas, arejam o espírito, avaliam corretamente o real, e, sobretudo, recobram o bom senso.
Colocando o homem e a mulher diante de si mesmos, a solidão é como um espelho, no qual eles veem aquilo que em suas vidas é detrito, é carga supérflua, poeira acumulada, e essa limpeza purifica e renova.
Se somos abertos ao outro e ao mundo, a solidão, tecida no silêncio, faz descobrir mais uma vez a novidade do amor. Ela é o momento de síntese, re-união, encontro.
Agora, tudo em nós é gratuidade e verdade. Nesse espaço emerge toda a nossa liberdade, libertada pelo silêncio que nos faz conhecer as raízes do amor.
Somos todo intimidade. Aqui não há lugar para a farsa, para a trapaça. A intimidade revela a verdadeira identidade da pessoa.
Colocados diante de nós mesmos, a solidão nos conduz para além de nós mesmos. Do silêncio que exprime amor brota a luz que aponta o caminho da interioridade: do para-além-de-nós-mesmos. Este caminho só pode ser percorrido pelo homem enquanto ele se encontra só. Não há exceção e ninguém pode percorrer por ele.
Aqui também a solidão conduz à morte: de si mesmo para que sejamos totalmente abertura e transcendência no outro e para o outro. É o resultado de ultrapassar todas as alienações.
Temos agora a completa posse de nós mesmos porque já não nos possuímos mais: estamos salvos porque nos perdemos. No espaço ilimitado de nossa interioridade tudo é maravilha.
O mergulho em si mesmo, para além de si mesmo, opera a metamorfose que nos devolve à vida transfigurados pelo amor que nos habita e plenifica”