15 – “Recomendação dos dez mil seres”
“Uma sentença do patriarca Dogen: “Para chegar à Porta você tem de ser recomendado pelos dez mil seres”.
Parece um pouco misterioso. Embora de perto já não seja tanto.
“Chegar à Porta” é, evidentemente, “chegar” onde devíamos chegar como fruto de nossa vida e destino de nosso ser.
A meta é chamada, alegoricamente, de “Porta” porque chegar é passar, é aproximar-se, é entrar.
A questão é como chegar lá. E para isso precisamos de recomendação.
E não uma recomendação qualquer, mas nada menos que a de “dez mil seres”.
Quem são esses “dez mil seres”? Por que dez mil? Dez mil é a cifra universal para incluir a todos, isto é, a todos aqueles seres que entraram em contato conosco ao longo de nossa vida. E são eles que devem nos recomendar.
Sem sua intercessão cumulativa não podemos chegar.
A mulher tem de ser recomendada pelo marido, e o marido pela mulher. Pais por filhos e filhos por pais.
Conhecidos, amigos, parentes, empregados, companheiros, mestres, discípulos.
Todos aqueles que conhecemos e que nos conhecem ainda que apenas por um encontro casual.
Todos têm de testemunhar em nosso favor para que possamos chegar.
E não apenas as pessoas, mas todos os seres. Cães e gatos, pássaros e cavalos, plantas e árvores, flores e campos.
A casa em que vivo, o quarto que ocupo, o ar que respiro, a terra e os astros, a lua e o sol.
Todos eles têm de ser testemunhas favoráveis e recomendar minha causa, se hei de chegar à Porta.
E qual recomendação que deles espero.
Não se trata de dizer se fui bom ou mau, pois a Criação não julga homens e mulheres, mas apenas de testificar que estive lá, que me viram, que entraram em contato comigo, e que eu também os vi, saudei, sorri ao passar leve e alegremente junto a eles em minha caminhada pela vida.
Têm de declarar que vivi, ou seja, que me dei conta deles, que não passei pela vida como um cego, surdo e desorientado, que vi cores e escutei vozes, que estive onde estava com consciência presente e atenção alerta, que sabia onde estava e que toquei, senti, amei e vivi.
Essas são as minhas testemunhas diante da grande Porta.
Em algumas corridas de barcos, carros, motos ou esqui, o corredor necessariamente tem de passar por certos postos fixos e se saltar alguns deles é desclassificado. E há controles para verificar a passagem.
Os “dez mil seres” têm de fazer algo assim por mim.
Eles não está lá para dizer que eu ganhei a corrida, mas que passei por eles. Não saltei os controles.
Não ignorei a dor nem o prazer, não escapei da companhia nem da solidão, não fechei os olhos diante da beleza ou da feiúra, não tapei os ouvidos à música ou ao barulho.
Passei por cada posto com plena consciência do momento vivido.
Quando os “dez mil seres” disserem isso de mim, chegarei à Porta.
Viver em contato. Estar onde estou. Fazer o que faço. Ver o que vejo. Dia após dia e hora após hora.
Essa é a disciplina da vida. Não se trata de acontecimentos grandes ou pequenos. Vale tudo.
O importante é dar valor a cada um com a presença atenta no momento dado.
Não fazem falta ações heroicas, mas sim vivência constante.
Se há maior mérito, ele está em valorizar as ações comuns e os momentos triviais.
Se estivermos plenamente presentes neles, o estaremos ainda mais facilmente nos da transcendência.
Dez mil seres pareciam muitos. Agora são poucos. Se eu aprender a viver com os olhos abertos, logo chegarei à Porta.”
(Carlos Vallés – Elogio da vida cotidiana)
No número 60 dos Exercícios Espirituais, S. Inácio nos oferece o texto mais transbordante de todo o livro dos Exercícios. Trata-se da “exclamação de admiração com intenso afeto”, ou seja, um grito cheio de assombro que escapa do coração da pessoa contrita e arrependida; grito de admiração que, ao brotar do mais profundo de seu ser, faz sentir-se em comunhão com toda a Criação, que, na sua paciência e solidariedade, abre nova possibilidade de vida ao pecador.
Embora tenha sido afetada pelo pecado, a Criação não é hostil ao pecador
É a Criação inteira, expressão da misericórdia divina, que “recomenda” e abre novo futuro ao pecador.
Textos bíblicos: Dan 3,51-90; Sl 104 (103); Ne 9; Tb 13.