Jesus converte a lei em amor
“…se a vossa justiça não for maior que a justiça
dos mestres da lei e dos fariseus…”
(Mt 5,20)
O Evangelho de hoje apresenta um tema complicado para os primeiros cristãos que eram todos judeus.
Como harmonizar a pregação e a práxis de Jesus com a Lei, que para eles era o mais sagrado.
De fato, os judeus falavam com orgulho da Lei de Moisés. Era o melhor presente que haviam recebido de Deus. Em todas as sinagogas guardavam-na com veneração dentro de um cofre, depositado em um lugar especial. Nessa Lei podiam encontrar aquilo que precisavam para serem fiéis a Deus.
Jesus, no entanto, não vive centrado na Lei. Não se dedica a estudá-la nem a explicá-la a seus discípulos. Nunca o vemos preocupado por observá-la de maneira escrupulosa. Certamente, não põe em marcha uma campanha contra a Lei, mas esta não ocupa um lugar central em seu coração. Jesus não foi contra a Lei, mas foi além da Lei. Quis dizer-nos que sempre temos que ir mais além da letra, da pura formulação, até descobrir o espírito da lei. “A lei mata, o espírito vivifica” (S. Paulo).
Jesus busca a Vontade de Deus a partir de outra experiência diferente, ou seja, procurando abrir caminho entre os homens para construir com eles um mundo mais justo e fraterno. Isto muda tudo. A Lei já não é o decisivo para saber o que Deus espera de nós. O primeiro é “buscar o reino de Deus e sua justiça”.
“Justiça” é um termo particularmente especial para Mateus, e que poderia ser traduzido como “ajustar-se a Deus” “sintonizar-se à sua vontade” – uma justiça que é infinitamente superior à Lei.
Os fariseus e escribas se preocupavam em observar rigorosamente as leis, mas descuidavam do amor e da justiça. Jesus se esforça por incutir nos corações dos seus seguidores outro talante e outro espírito: “se vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino de Deus” (v.20). Eles cumpriam a lei escrupulosamente, mas só externamente, e isso não os fazia melhores mas mesquinhos.
Os “fariseus” e os “escribas” são os típicos representantes de uma espiritualidade legalista, distante da realidade humana. Eles não percebem que, observando detalhadamente todas as leis, não estão pensando em Deus, mas, sim, em si mesmos. No fundo, não tem necessidade de Deus. Acreditam que, cumprindo perfeitamente todos os mandamentos por suas próprias forças, tem o direito de exigir de Deus uma recompensa. Estão menos interessados no encontro com Deus do que no cumprimento minucioso da lei.
O que mais lhes interessa é o cumprimento das normas e ideais que se impuseram a si mesmos.
De tanto se fixarem sobre as leis, esquecem o que Deus realmente deseja do ser humano, tornam-se frios, insensíveis… e assumem o papel de juiz para julgar o comportamento dos outros.
É preciso superar o legalismo que se contenta com o cumprimento literal de leis e normas. O empenho de Jesus consistiu em fazer as pessoas passarem de uma religiosidade externa a uma religiosidade interna, ou seja, passar de um cumprimento de leis a uma descoberta das exigências de nosso próprio ser.
Nesse sentido, o Sermão da Montanha não é Lei, mas Evangelho.
Esta é a diferença entre a Lei e o Evangelho: a Lei deixa a pessoa abandonada às suas próprias forças, impõe-lhe preceitos que é preciso esforçar-se por cumpri-los, ameaça-a, premia-a, exige-lhe empenho…
O Evangelho, no entanto, coloca a pessoa diante do dom de Deus, faz-lhe conhecer seu Pai, converte-a em filho(a), transforma-a por dentro… e não a obriga a nada. No amor não há imposição, mas acolhida.
Deus só pode comunicar sua Vontade na intimidade do nosso coração. Em cada um de nós está a “marca” da presença de Deus. Essa presença é sua “vontade”.
Se fôssemos capazes de descer até o fundo do nosso ser e compreendê-lo no essencial, descobriríamos ali essa vontade de Deus; ali Ele está nos dizendo o que quer e espera de nós. A vontade de Deus não é nada diferente ou acrescentado ao nosso próprio ser, não nos vem de fora, senão que está sempre aí.
Esta é a razão pela qual tantos homens e mulheres foram capazes de descer até a “marca” de seu ser e descobrir o que Deus espera de um ser humano.
A expressão desta experiência é Vontade de Deus, porque a única coisa que Ele quer de cada um de nós é que sejamos nós mesmos, ou seja, que cheguemos ao máximo de nossas possibilidades.
Quê significa, então, “cumprir a lei”?
Uma lei de trânsito, por exemplo, pode-se cumpri-la perfeitamente só externamente; ela é para facilitar o fluxo dos carros e pedestres.
Quando falamos de “lei de Deus”, as coisas não funcionam assim. O objetivo desta lei é a mudança profunda de nosso ser até ajustá-lo ao que Deus espera de nós. Se não interiorizamos o preceito até o ponto de deixar de ser preceito e, se não nos convencemos de que isso é o melhor para nós, o mero cumprimento da lei nos deixa como estávamos, não nos enriquece nem nos faz melhores.
Quando buscamos a Vontade do Pai com a paixão com que Jesus a buscava, vamos sempre mais além do que dizem as leis. Para caminhar em direção a esse mundo mais humano que Deus quer para todos, o importante não é contar com pessoas observantes de leis, mas com homens e mulheres que se pareçam com Ele.
Aquele que não mata, cumpre a Lei, mas se não arranca de seu coração a agressividade para com seu irmão, não se parece com Deus. Aquele que não comete adultério, cumpre a Lei, mas se deseja egoisticamente a esposa de seu irmão, não se assemelha a Deus. Nestas pessoas reina a Lei, mas não Deus; são observantes, mas não sabem amar; vivem corretamente, mas não construirão um mundo mais humano.
Temos de escutar bem as palavras de Jesus: “Não vim abolir a Lei e os Profetas, mas dar plenitude” (v. 17). Não veio a lançar por terra o patrimônio legal e religioso do Primeiro Testamento. Veio para “dar plenitude”, alargar o horizonte do comportamento humano, libertar a vida dos perigos do legalismo.
Nosso cristianismo será mais humano e evangélico quando aprendermos a viver as leis, normas, preceitos e tradições como Jesus os vivia: buscando esse mundo mais justo e fraterno que o Pai quer.
Cumprir só a Lei evita o castigo. Isso não é boa-notícia.
O amor nos faz humanos e essa é sua verdadeira recompensa. O amor não é um meio para alcançar um prêmio. É o caminho e a meta de todos os caminhos.
As leis, normas religiosas são “andadores” que impedem uma queda; podemos precisar deles por um bom tempo. Mas o dia que aprendemos a andar, eles serão um grande estorvo. E se um dia pretendemos correr, será impossível. Quando chegarmos a um conhecimento profundo de nosso próprio ser não precisaremos de apoios externos para caminhar para a verdadeira meta. “Ama e faze o que quiseres” (S. Agostinho) ou “Quem ama cumpriu toda a Lei”.
No Evangelho de hoje há também um matiz que costumamos passar por alto e que é a essência da proposta de Jesus. O texto não diz: “Se tu tens alguma queixa contra teu irmão”, mas “Se teu irmão tem alguma queixa contra ti”. Trata-se de olhar a própria vida na perspectiva do outro. De fato, quão difícil é nos deter a examinar se nossa atitude prejudicou o irmão. Damos por suposto que quem falha é sempre o outro. A culpa é sempre dos outros.
Texto bíblico: Mt 5,17-20
Na oração: Diante de Deus, deixar aflorar os sinais de “farisaísmo”, presentes no seu cotidiano.
Frente às limitações do outro, o que prevalece? O peso da lei ou a força da misericórdia?