“Livra-nos do Deus que dá medo”
“De Deus dizemos tranquilamente coisas que não
nos atreveríamos dizer de nenhuma pessoa decente”
(Tony de Mello)
Chegamos à pós-modernidade com uma enorme carga de medo; somos atormentados o tempo todo pelo medo; um medo sem nome, um fantasma sem rosto, escuro como uma sombra e rápido como uma tempestade; medo cruel que afeta os corajosos e agride os ousados.
O medo deixa as pessoas vulneráveis à manipulação.
Uma longa cadeia de medos, da primeira à última respiração, nos ameaça nesta terra de sombras.
Diferentes medos congelam nossas relações, atormentam nossa vida, quebram nossa serenidade, obscurecem o nosso próprio ser, matam nossos sonhos e intuições: medo do fracasso, da velhice, medo de mudanças, medo de decidir, medo de não corresponder às expectativas dos outros, medo de perder o emprego, medo de se comprometer, medo da situação social-econômica, medo da violência, medo do diferente, medo do vazio, medo do outro, medo da solidão, medo do novo, medo de viver e de morrer, medo de dizer a verdade (dá medo porque também se tem medo da verdade), medo do futuro…; há um medo silencioso que se manifesta na falta de sentido da vida: o medo que abala as razões para viver. Nada mais terrível do que ter medo de tudo. Com medos é insuportável viver.
O medo é um câncer que ameaça à fé, ao amor e à esperança de pessoas e instituições; ele corrói as fibras humanas, asfixia talentos, esvazia a vida e mata a criatividade.
O medo encolhe o ser humano, inibe a decisão e bloqueia os movimentos em direção ao “mais”.
A intensidade do medo pode anular a capacidade de reação das pessoas ou das instituições; ele impede o discernimento e a busca da solução mais inteligente para os problemas; longe de resolvê-los, pode agravá-los a médio e longo prazo.
Enfim, o medo obscurece o sentido e a direção da vida, tira o brilho tão próprio do amor; ele nos acovarda e nos enterra na acomodação mesquinha. E este medo se projeta na relação com Deus, ou seja, o medo nos faz projetar uma falsa imagem de Deus.
Quem pensa e sente dessa maneira, dificilmente pode relacionar-se com o Deus que Jesus nos revelou. Deus já não é o Pai misericordioso, senão o Transcendente que se compreende a partir do poder, da grandeza, da onipotência e tudo o que supera infinitamente o ser humano. Como consequência a relação com Ele já não é mais vivida a partir da bondade e do amor, mas da força e do medo.
Quem está convencido de que Deus atua assim, na realidade crê num “Deus” que é um constante perigo e uma ameaça insuportável.
Por isso, é urgente acabar com a imagem de Deus que ameaça, que não liberta nem cura, que nos amarra e não nos deixa viver.
Nesse sentido, é útil mergulhar e conhecer o verdadeiro sentido da Parábola dos talentos (Mt 25,14-30)
Normalmente, costuma-se explicar esta parábola dizendo que Deus dá a cada pessoa uma quantidade determinada de talentos, divinos e humanos, dos quais terá de prestar contas a Ele, até o último centavo, no dia do Juízo Final. Quando se interpreta a parábola dessa maneira, o Deus que aí aparece é uma ameaça insuportável; ao considerar a parábola como uma exortação à responsabilidade, falsifica-se o sentido autêntico da mesma. O que está em questão aqui é a “imagem” de Deus que todos trazemos.
Temos de levar em conta a situação concreta que Jesus vivia quando falava em parábolas. Ele viveu situações muito conflitivas e de enfrentamento com os fariseus, os sumos sacerdotes, os mestres da lei.
Mateus coloca esta parábola em um momento de máxima tensão e enfrentamento de Jesus com os fariseus; concretamente, com o “Deus” dos fariseus, que era um Deus terrível, ameaçante e justiceiro.
O indivíduo que recebeu um só talento estava convencido de que o “senhor”, ou seja, Deus, é “duro”, pois “colhe onde não semeou e ajunta onde não espalhou”. Esse indivíduo tinha uma ideia terrível de Deus. E por isso, como é natural, “tinha medo”; e o medo o levou a “esconder o talento debaixo da terra”. Isso, precisamente, foi sua perdição. O medo paralisa, ou seja, torna as pessoas estéreis.
No fundo, Jesus está dizendo o seguinte: “o Deus que ameaça com a exigência da prestação de contas até o último centavo, é um Deus que bloqueia e anula as pessoas, os grupos, as comunidades”.
Porque todo aquele que traz em sua consciência um Deus que mete medo, não fará nada nesta vida que valha a pena, já que o muito ou o pouco que recebeu será enterrado, por causa do medo. A promessa converte-se em ameaça, o chamado em imposição, a existência em castigo, o Evangelho em lei.
Crer em um Deus que pede conta até o último centavo é o mesmo que crer em um juiz justiceiro que torna a vida amarga e pesada. Sem a superação cotidiana dos medos, nossa experiência de Deus estará comprometida, perderá sua força inovadora e nos fará menos humanos.
A fé no “Deus que dá medo” se expressa no medo permanente como atitude de vida. Demasiado temor, demasiada falta de espontaneidade e de alegria na relação com Deus.
De fato, não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do que os estoques de medo guardados nas escuras profundezas do nosso ser.
É preciso rastrear, identificar, compreender e desterrar os medos de nossos corações.
É urgente substituir a cultura do medo pela cultura da coragem. A coragem desbloqueia energias, impulsiona decisões, levanta projetos, reacende a criatividade e o gosto por viver.
E do coração amoroso e maternal-paternal de Deus brota este convite: “Não tenhais medo”.
Um convite com força libertadora; é a força da Graça de Deus que alavanca o passo para a frente: o passo da mudança, o passo da ousadia de sonhar de novo, o passo do trabalho criativo…
As batalhas mais profundas do espírito se conquistam com o atrevimento da coragem, com a força da fé, com a imaginação solta, com a criatividade livre e desimpedida…
Texto bíblico: Mt 25, 14-30