Ou Deus, ou a vida: o dilema que nos desumaniza
“Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho Unigênito, para que não morra todo aquele que n’Ele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16).
O contexto do Evangelho de hoje é a conversa noturna de Jesus com Nicodemos, uma autoridade religiosa, membro do Sinédrio. Nicodemos representante da religião judaica, Jesus portador de vida.
De fato, muitas pessoas que creem, com frequência, estabelecem uma separação entre Deus e a vida; ou seja, Deus e vida como realidades dissociadas e, muitas vezes, contrapostas.
São muitos aqueles que veem na vida, com seus males, seus sofrimentos e suas contradições, a grande dificuldade para acreditar que existe um Deus infinitamente bom e misericordioso. E, em sentido contrário, outros veem em Deus o grande obstáculo para viver, desenvolver e desfrutar a vida em toda sua plenitude; pois o Deus que lhes é anunciado é o Deus que manda, proíbe, ameaça e castiga.
Tem-se a impressão que, para viver a vida com todas as suas possibilidades e suas riquezas, é preciso prescindir de Deus.
Na realidade, o que acontece é que, muitas vezes, em Nome de Deus, reprime-se tudo aquilo que na vida significa dinamismos, impulsos, forças… enfim, tudo aquilo que o ser humano mais deseja e necessita: viver com segurança, com dignidade, respeitado em seus direitos, acolhido em suas diferenças, com a possibilidade real e concreta de viver prazerosamente.
Com isso, a religião e a vida entram em conflito, porque a religião complica a vida de muitas pessoas que levam a sério sua experiência de Deus. E a vida, com seus dinamismos, seus direitos e seus instintos mais básicos, é vista com suspeita, como um perigo que impede fazer uma experiência de Deus.
Daí as consequências funestas desta confrontação entre Deus e a vida: a centralidade do sacrifício e da renúncia, a repressão dos instintos da vida, a violência contra os dinamismos afetivos, a agressão ao prazer e à alegria de viver…
No entanto, o Evangelho de hoje deixa muito claro que a mediação entre os seres humanos e Deus é a vida, não a religião. A religião é uma expressão fundamental da vida e deve estar sempre a seu serviço.
Como consequência, a religião é aceitável só na medida em que serve para potenciar e dignificar a vida, inclusive o prazer e a alegria de viver. Quando a religião é vivida de maneira a agredir à vida e à dignidade das pessoas, ela se desnaturaliza e se desumaniza, e acaba sendo uma ofensa ao Deus revelado por Jesus.
De fato, para Jesus, o primeiro é a vida e não a religião. Ele colocou a religião onde deve estar: a serviço da vida, para dignificá-la. Ele tomou partido da vida, contra aqueles que, a partir da religião, cometiam todo tipo de agressão contra a vida.
Jesus se deixou conduzir pelo Espírito do Senhor para aliviar o sofrimento humano, levar a Boa Nova aos pobres, devolver a vista aos cegos, dar a liberdade aos presos e oprimidos, dar vida àqueles que tinham a vida massacrada ou diminuída, devolver a dignidade da vida àqueles que eram encurvados pelo peso da opressão e do legalismo.
É bom lembrar que no Evangelho de João o substantivo “vida” aparece 24 vezes; todos os “sinais” (milagres) que ele escolheu se referem à vida, pois são ações de Jesus que dão vida, que devolvem a vida a quem a tem limitada ou perdida.
Ele alegra a vida numa festa de casamento, fazendo com que as pessoas bebessem um excelente vinho (Jo 2,1-11); devolve a saúde a um jovem que está morrendo (Jo 4,46-54); cura um pobre paralítico que leva trinta e oito anos sem poder mover-se (Jo 5,1-9); alimenta milhares de pessoas que, no deserto, não tem o que comer (Jo 6,1-14); recupera a visão a um cego de nascimento (Jo 9,1-38); e, mais significativo ainda, devolve a vida a morto em processo de decomposição (Jo 11,1-46).
Em todas estas situações o que está em jogo é a vida. Não “outra” vida, mas a “vida”.
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, que é já a vida presente, a vida atual, mas uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, enquanto que é uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma poderá com ela.
Para fazer-se presente neste mundo, Deus não se pôs a dar-nos doutrina e a ensinar-nos verdades, mas apresentou-se a nós na vida de um Homem que nasceu pobre, que viveu entre os excluídos e que “morreu de tanto viver”.
Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré. Isso quer dizer que o sinal de que uma pessoa encontrou o Deus é quando ela se deixa invadir pelo humano e é sensível a toda expressão de vida; ela “aproxima-se da luz” (Jo 3,20) quando de verdade se relaciona com os outros como Jesus se relacionou, sente o que Jesus sentiu, vive o que Jesus viveu.
A surpresa e a riqueza de cada momento vivido intensamente, já é antecipação do que será a vida plena. Viver a vida neste mundo, em comunhão com todas as expressões de vida, é conhecer a alegria de viver como se fôssemos eternos. Podemos “viver de modo eterno” vivendo as experiências que são eternas: amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar…
Podemos falar de uma plenitude de vida, que com toda verdade, pode-se chamar “vida eterna”, porque transcende os limites deste mundo. Quem não encontra a Deus “nesta” vida, não o encontrará jamais.
A fé nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus. Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna.
A espiritualidade que o Evangelho apresenta não é um projeto que centra o sujeito em si mesmo, em sua própria perfeição, ou na aquisição de determinadas virtudes, mas um projeto centrado nos outros, orientado aos demais, com a intenção de aliviar o sofrimento alheio. É um projeto centrado na defesa e no respeito à vida, na luta por sua dignidade.
Deste modo, aparece claro que na espiritualidade cristã, funde-se e confunde-se a causa de Deus com a causa da vida; os cristãos encontram a Deus somente na medida em que defendem, respeitam e dignificam a vida.
Texto bíblico: Jo 3,31-36
Na oração:
“Senhor, saiba eu caminhar sob o impulso da Vida, aceitando crescer graças ao diferente.
As cordas da minha vida sejam dedilhadas pelo delicado sopro de vosso Espírito.
Há uma força vital que nos une a todos.
E então dê graças a Deus por tantas vidas, por fazer parte de um mar de vida, que às vezes é tormentoso e outras, pacífico, mas sempre incrivelmente belo”.
Quando já não havia outra tinta no mundo
o poeta usou do seu próprio sangue.
Não dispondo de papel,
ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz,
o rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem voz nem nascente.