Manhã de Oração
27 de outubro de 2019

O farisaismo que nos envenena

 

“O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo” (Lc 18,11)

 

Nesta parábola, mais uma vez Jesus contrapõe os dois extremos da sociedade judaica daquele tempo: o fariseu, expressão máxima da piedade e da moralidade, e o publicano, que por sua profissão, era a expressão máxima do pecador, distante dos ideais religiosos.

Ambos vão ao templo para orar, e, na oração, cada um deles revela sua vida e seus sentimentos.

De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus.

Jesus nos apresenta o fariseu como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma, e que tem essa segurança porque cumpre minuciosamente com as observâncias religiosas. Em sua oração, ele não pede nada, mas informa a Deus sobre seu legalismo: na realidade não é Deus o centro da sua existência, mas seu eu. Ele dá graças por sua conduta perfeita e exemplar. Por considerar-se “justo”, apresenta a Deus uma lista de pessoas indesejáveis, censurando e condenando a todo mundo.

O risco do “farisaísmo” é subir o pedestal da “perfeição” e do “legalismo”, distanciando-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de converter-se a Deus no seu íntimo.

Na sua oração, o fariseu se considera “justo” e pensa agradar a Deus com suas observâncias e práticas legais. Ocorre que não é nada elegante alguém se apresentar a Deus com as credenciais de “justo”, pois o fariseu se esquece que só Deus pode justificar o ser humano. A auto-glorificação impede sua humanização. Penetra no lugar sagrado sem que o sagrado penetre nele. Petrificou-se em seu legalismo.

Ele está cego e não vê que também é pecador, dependente da misericórdia de Deus.

Não reconhece sua realidade pobre e limitada e, em sua oração, está ausente o pedido de perdão.

Incapaz de olhar intimamente para si, cobre com um véu os próprios pecados, fazendo de conta que eles não existem. Incensurável, respeitador e cumpridor de todas as leis – porém cheio de si –, o fariseu voltou para casa com um pecado a mais.

A consequência é vida dupla: a fachada externa perfeita que esconde um interior frio e insensível, resistente a perceber a própria fragilidade.

Na sua auto-suficiência e com sua oração um tanto blasfema, o fariseu está aí, de pé, para dar espetáculo, aguardando o aplauso da plateia.

Ele pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus, que pode estabelecer o confronto sem problemas, como de igual para igual. O fariseu não suplica a Deus e nem tem necessidade de ouvi-Lo; já eliminou as distâncias com as suas palavras e se ilude de ter uma linha direta com o Altíssimo.

Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus.

Seu louvor e agradecimento é apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego; na sua oração Deus não tem o lugar que lhe é devido; a oração passa a ser um monólogo vazio e presunçoso de quem “celebra” seu “eu” e seus méritos diante de Deus.

E como fala só consigo mesmo, encontra-se só com seus méritos e suas pretensões. O seu monólogo é um palavreado vazio, exibicionismo enganoso de um “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo.

Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa; ele acha que pode impressionar Deus com suas qualidades aparentes e seus sacrifícios e boas obras puramente formais, sem extirpar de seu coração o orgulho e o desprezo pelos outros.

Um outro aspecto importante aparece na parábola: como o fariseu se considera perfeito e não vê nenhuma falha em si mesmo, ele se acha diferente e melhor do que todos. “Ó Deus, dou-te graças porque não sou como o resto dos homens”.

Ao mesmo tempo que se auto-elogia, critica e despreza os outros. Ele não descobre nenhum projeto divino sobre si, basta-lhe saber que é melhor que os outros.

O fato é que os grandes “observantes” são os grandes desprezadores, que não se interessam pelas pessoas e menosprezam todo aquele que não pensa e vive como eles. O agravante é que, quem vive assim não se dá conta do que faz. Isso porque faz de maneira tão dissimulada e sob formas tão “espirituais” e com argumentos tão “religiosos”, que nem ele mesmo é consciente das agressões que comete contra as pessoas que não se encaixam no seu modo de ser. Não se pode discutir com um fariseu; ele tem sempre razão.

Além disso, é um hipócrita, porque substitui a Vontade de Deus por leis humanas. Na prática, são indivíduos que demonstram ser ateus, porque, na realidade, o que lhes importa é sua própria honra, e não a honra de Deus. O que lhes interessa é brilhar diante dos homens; a única coisa que lhes preocupa é sua boa imagem diante das pessoas: querem ser vistos, apreciados, louvados. Não tem outro Deus a não ser eles mesmos. O que realmente envenena a vida destas pessoas não é a vaidade ou a soberba. É o ateísmo.

Jesus destrói o conceito de “justificação” rabínica, baseada no cumprimento da lei, quando, na pessoa do publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, sente a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente de sua indigência e fragilidade, o publicano entrega-se a Deus sem reservas, confia-lhe o seu futuro e espera em Sua misericórdia.

A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de detê-lo no processo de auto-divinização, própria do fariseu.

O publicano não tinha esperanças: reconhecendo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da grandeza e transcendência de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ousar entrar no templo. Ele nada tem para apresentar a Deus, nada de que se orgulhar e nada para exigir.

Só lhe resta a pobre oração dos excluídos e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e humildes.

O “fariseu” que todos hospedamos em nosso interior realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros.

O publicano, por outro lado, nos revela que basta redescobrir o caminho da humildade (do húmus), bem no fundo de nós mesmos: este é o lugar da oração.

E quanto mais baixo for o ponto de partida, tanto mais alta ela vai subir…

A salvação que esperamos não é fruto de nosso trabalho e penitência, de nossa prática legal e de nossas virtudes. Ela é puro dom de Deus, divino presente de seu coração de Pai. Só nos resta acolhê-la em atitude de humilde gratidão.

 

Texto bíblico: Lc 18,9-14

 

Na oração:

. Fazer leitura compassiva das atitudes petrificadas em sua vida.

. Sua vida cotidiana gira em torno da perfeição farisaica ou da misericórdia divina?

 

“Seja paciente com as coisas não resolvidas em seu coração…

Tente amar as próprias questões… Não procure agora as respostas, que não podem ser dadas, pois você não seria capaz de vivê-las… É importante viver tudo. Viva as questões agora. Talvez você possa, então, pouco a pouco,

sem mesmo perceber, conviver, algum dia distante, com as respostas”

(Rainer M. Rilke).