Deus: o numinoso em nós
“O Reino é dentro de nós, Deus nos habita. Não há como escapar à fome de alegria”. (Adélia Prado)
“Certa vez, passeando pela China, um jovem estudante europeu conheceu uma menina de rara beleza.
Foi um encantamento mútuo e silencioso, uma vez que um desconhecia o idioma do outro.
Isto, porém não impedira que se tocassem em sua alma. O estudante regressa a seu país, prometendo, mais a si mesmo do que a ela, retornar um dia, para viver em definitivo sob as luzes daquele amor.
De volta à casa, a ansiosa espera de que o carteiro lhe trouxesse um primeiro sinal de sua amada.
Teria ela, em igual intensidade, se afeiçoado a ele? Tê-lo-ia, quem sabe, esquecido?
Mais alguns dias e chega a primeira carta. O regozijo mal lhe cabe no peito. Os signos ali inscritos, ainda que completamente ininteligíveis, são como um tesouro inestimável, pois guardam em si o coração de sua amada.
Às carreiras, ele procura um tradutor. Quer saber tudo. O significado ordinário de cada ideograma e o seu possível velado sentido. Quem sabe, não estaria ali, cravada no profundo de um daqueles sinais, uma declaração de amor. Imediatamente, ele responde a carta, dizendo a ela de sua afeição e saudade.
Cartas vem e vão, até que o jovem começa a sentir um certo incômodo no fato de ter que recorrer sempre a um tradutor. Estaria ele descrevendo, com fidelidade, a largueza e a profundidade de seu amor?
O jovem começa a estudar chinês. As mensagens da amada continuam chegando às suas mãos.
Mas a fim de que suas próprias respostas fossem precisas em estilo, beleza e entretons semânticos, ele protela sempre de novo suas cartas. Os anos se vão. Os estudos multiplicam-se, acuram-se e culminam numa brilhante tese sobre a diversidade dialetal da língua chinesa, fazendo daquele jovem um renomado perito em sinologia.
As feições da amada, porém, submergem na obscuridade de uma vaga lembrança.
Vez por outra, sobressaltavam-no ainda uma doce saudade e o ligeiro desejo de voltar àquele país, mas os compromissos acadêmicos e a idade avançada já não permitiam mais uma tal aventura.
Era o triste fim de uma história repleta de promessas de felicidade: ele dominava agora, notavelmente a fala da amada; escapara-lhe, porém, falar com ela, de coração a coração, a ponto de perdê-la.
Ele aprendeu por amor e desaprendeu a amar”. (S. Kierkegaard)
Esta é a experiência dos Exercícios: não é falar a Deus, nem falar de Deus.
Mas é mergulho no insondável Mistério de vida, de comunhão e de Amor.
Trata-se da experiência do numinoso: é aquela experiência que nos toma e nos envolve totalmente.
Por isso também possui enorme potencial transformador.
Experiência da presença do Divino e do Sagrado por detrás de todas as coisas e do universo.
E dentro do nosso coração: eis, por excelência, a eclosão do numinoso.
Esse Numinoso constitui nosso Sol interior, nosso Centro irradiador.
Ele fala dentro de nós. Ele nos adverte. Ele nos apóia.
É o nosso mistério que toca no Mistério do mundo e no Mistério de Deus.
Ele constitui o fundamento da dimensão espiritual do ser humano.
“O Sol resplendente está sempre dentro da alma e nada pode arrebatar sua magnificência” (S. Teresa D’Ávila)
O ser humano possui naturalmente interioridade. E essa interioridade é habitada por um Sol e pelo Numinoso. Os mestres espirituais chamam a esta interioridade e a este Sol central também de Imago Dei (imagem de Deus), ou a própria presença divina em nós.
Os místicos ousam mais e dizem: “temos Deus dentro de nós; é tão unido a nós que Ele é a nossa própria profundidade”.
É o céu que vem tocar a terra, Deus se aloja no coração humano, o Reino se entrelaça na configuração de nossa convivência e a fé se faz uma atitude de confiança inabalável.
Deus anda abraçado conosco e sua graça banha suavemente todas as dobras do nosso ser e agir.
Em Deus sempre vivemos. Em Deus nos movemos. Em Deus somos. A Ele nunca vamos. D’Ele nunca saímos.
N’Ele sempre nos encontramos. Ele nos está gerando a cada momento (“o ser humano é criado para…). Precisamos vivenciar a Fonte donde tudo jorra e onde tudo deságua. Caminhar à luz do Sol primordial. Regressar ao seu seio luminoso. Eis a meta derradeira do ser humano: a auto-transcendência.
Texto bíblico: Lc 17,20-25.
“Senhor, acenda meu desejo no Teu e minha vontade na Tua; faze das duas uma só vontade. Entra com Tua liberdade nas raízes da minha liberdade; e abre espaços grandes de libertação e fortaleza”.