Filme: Aos teus olhos
por Luiz Santiago
O título deste segundo longa-metragem de ficção dirigido por Carolina Jabor (o outro foi Boa Sorte, em 2014) é muito importante para a compreensão geral das discussões propostas pelo filme. Uma ficção realista escrita por Lucas Paraizo (que na mesma safra havia co-assinado Gabriel e a Montanha), Aos Teus Olhos fala sobre Rubens, um professor de natação que há cinco anos trabalha em um clube. Sua conduta, neste período, é inquestionável. Ele é o tipo de professor a quem os alunos adoram e seu comportamento extrovertido e carinhoso com todos nunca foi um problema para ninguém. Até que acontece uma denúncia. Um aluno diz que este professor o beijou. Na boca.
Uma visão mais apressada nos traria comparações com A Caça (2012), porque a temática é mesmo bastante similar. Mas os desdobramentos aqui são outros, assim como a abordagem feita pelos dois diretores para o problema em questão. Uma acusação de abuso ou assédio sexual conta criança é algo que gera imenso furor (não sem motivos, óbvio) e sempre haverá reações impulsivas e muito apaixonadas a respeito. O ponto, no entanto – e isso é muito, muito importante ter em mente desde o início – é que nos dois casos temos a partida para a condenação do indivíduo sem antes existir uma prova ou uma decisão oficial de que ele é culpado. Em A Caça, isso se coloca na comunidade, com um desfecho bem pontuado pelo roteiro, resolvendo a querela. Em Aos Teus Olhos, isso se coloca no desembestar do tribunal da internet e das redes sociais, com um desenvolvimento ambíguo por parte da direção e do roteiro, desaguando em um final aberto.
O mais interessante aqui é o tema e as discussões que ele engendra, não necessariamente a maneira como o filme é estruturado ou dirigido. A apresentação de personagens é rápida e não há nenhum tempo para que os conheçamos mais. A rigor, não temos desenvolvimento de personagens aqui. O que temos é a via crucis de Rubens (vivido por um ótimo Daniel de Oliveira, com um olhar destruído, um sorriso cínico e uma raiva ou tratamento um tanto incompatível com o que se espera de alguém inocente de uma acusação), cada vez mais atolado no lamaçal de “situações estranhas” em torno dele. A montagem faz um ótimo papel de guiar o espetáculo e segurar os momentos de tensão, acompanhados por uma fotografia azulada e cinzenta, ligando-os ou contrastando-os a pequenas consequências. Ao longo do filme, porém, sentimos falta de um peso maior das interações interpessoais, que são poucas e só se tornam relevantes quando há enfrentamento ou demonstração de dúvida, raiva e partida para ação, basicamente fixada em Marisa (Stella Rabello) a mãe do garoto Alex (Luiz Felipe Mello), núcleo onde vemos a diretora utilizar – de maneira que vai agradar a uns e desagradar a outros – a troca de mensagens e divulgação de notícias, acusações, palavras de ordem e pedido de justiça pela internet, especialmente por Whatsapp e Facebook.
Mesmo que o texto tenha a intenção de fincar pé na ambiguidade, e que essa proposta seja delineada com o personagem agindo de maneira suspeita alguma vezes, e de maneira inocente em outras, em nenhum ponto notamos uma tentativa de ignorar o caso ou de linchar o professor por algo que um aluno disse (é muito importante destacar que não ouvimos o garoto falar nada. É a mãe dele que, de maneira muito vaga e como se estivesse tirando conclusões próprias, diz o que aconteceu e inicia a colocação via internet). Com a intenção de olhar criticamente para as fake news e para a base do exercício da justiça, o texto deixa claro que chegamos a um momento onde pessoas que são acusadas de algum crime são condenadas e muitas vezes executadas (já aconteceu antes e mais de uma vez, como vocês sabem) antes mesmo de uma investigação ser feita ou de ser confirmada a culpa. Não se trata aqui de um caso como “justiça comprada” ou “delegacia ignorando as denúncias”, etc. Esses são outros crimes, institucionais, em volta de uma situação já bastante complicada. Mas não é o caso aqui. O presente longa trata de um estardalhaço midiático em cima de algo sobre o qual não se tem certeza. E isso é um enorme perigo, porque pode acontecer com qualquer um.
SPOILERS!
Não chegamos, porém, aos finalmentes. Sem desenvolver os personagens e sendo muitíssimo vago na tomada de decisões, o filme foca na reação íntima dos que sofrem com o caso, cada lado da história tendo os seus motivos para temerem, se enraivecerem e suspeitarem. Aí é que aparece algo interessante, o julgamento moral a partir do momento que existe uma acusação. Um objeto de um aluno encontrado e guardado por um professor é algo bastante trivial e acontece em qualquer escola ou clube. Se adultos se esquecem das coisas, imaginem as crianças. Mas na obra, existe uma interessante manipulação da nossa opinião e do nosso julgamento em relação ao personagem, ou seja, a partir do momento que surge a denúncia, o objeto não é mais algo trivial. Se torna uma “prova”. O mesmo se dá com um fato de ele namorar uma garota que acabou se completar 19 anos. Uma ex-aluna. Não existe nada de errado nisso se estamos falando de alguém maior de idade. Mas no momento em que há a denúncia, enxerga-se como “prova”. Existem outros exemplos dessa dinâmica no filme, mas já deu para entender como a direção de Carolina Jabor faz com que a gente passe pelo mesmo processo de readequação de visão e julgamentos éticos que alguns personagens também passam.
Aos Teus Olhos é um filme sobre diferentes olhares morais para uma mesma situação. Para uma acusação em processo de busca de provas. E para tomadas de decisão antes mesmo de um resultado comprovando que a denúncia é verdadeira. A internet é um excelente meio para acuar pessoas poderosas, que em outras épocas conseguiriam se safar de algum crime porque pouca gente teria conhecimento dele. É uma boa arma e muitas vezes usada para o bem. Mas é também um meio de propagação de notícias falsas, de denúncias não comprovadas, de histeria e afirmação de uma série de coisas antes mesmo de um parecer legal vir à tona. Em dado momento, percebemos que todos têm a maior sede de que a justiça seja feita. Mas quase todos se esquecem que, em um cenário de jogo limpo, para que a justiça seja feita, é preciso ter certeza de que o acusado é culpado, e até lá, há um procedimento a ser seguido. Depois, não adianta achar que, se inocentado, haverá o proverbial “vida que segue” para aquele que recebeu a denúncia falsa – especialmente de um crime sexual. Sua vida, em diversos aspectos sociais, mesmo após a inocentação, está acabada. E não existe indenização ou pedido de desculpa de meia dúzia de jornais que pague ou mude isso.