Filme: O Evangelho segundo São Mateus
por Marcelo Sobrinho
“Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu ordenei a vocês. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos”.
Mateus, capítulo 28,19-20.
Ainda parece irônico que o melhor filme sobre Jesus Cristo, segundo o próprio Vaticano, seja uma obra da década de 60, realizada por um cineasta ateu e comunista. Em 1964, ao ler na íntegra o evangelho de Mateus, Pier Paolo Pasolini abandonou todos os outros projetos para recontar a história do homem que fundaria uma das mais importantes doutrinas de todos os tempos. Todas as falas de seu terceiro longa-metragem foram retiradas ipsis litteris do evangelho homônimo, em um trabalho de grande reverência ao texto original. O italiano dedicou seu filme ao papa João XXIII e, com ele, venceu o Prêmio Especial do Júri do Festival de Veneza do mesmo ano. O Evangelho Segundo São Mateus é um marco no cinema de Pasolini e na própria história da sétima arte, alterando a sintaxe cinematográfica para dar conta da grandiosidade do homem e da eternidade do mito.
O Jesus de Pasolini é um homem de palavras retas, mas também de silêncios expressivos. Seus discursos tão magnéticos, que impressionam tanto a seus discípulos como a seus detratores, se alternam com momentos em que Jesus permanece mudo, com o olhar fixo e habitualmente registrado em longos planos de nuca. Pasolini não esconde sua admiração pela figura de um dos homens mais importantes que pisaram neste planeta. Sua santidade é declarada, de forma generosa (vinda de um ateu), por diversos enquadramentos que mostram Jesus em contra-plongèe, com o sol resplandecendo na parte superior do quadro. Novas versões do filme, coloridas digitalmente, não superam a fotografia em preto e branco que o tornou um grande clássico. A força do preto e branco surge na alternância entre o claro e o escuro, que provoca, por exemplo, o magnífico efeito da famosa cena do Sermão da Montanha, em que o personagem principal discursa peremptoriamente sob o dia e a noite, o sol e a chuva.
A trilha sonora de O Evangelho Segundo São Mateus é de uma beleza ímpar. Pasolini consegue a façanha de utilizar peças barrocas e clássicas, como a ária Erbarme Dich, da missa A Paixão Segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach, ao mesmo tempo em que introduz um blues à cena da chegada dos Três Reis Magos. O que poderia ser um anacronismo ridículo e imperdoável se transforma, nas mãos do diretor italiano, em um dos momentos mais belos de todo o filme. Mais uma vez, o amadorismo de seu elenco traz à cena rostos de pessoas comuns. O próprio protagonista é interpretado por Enrique Irazoqui, um homem moreno, de cabelos negros – nada diferente de qualquer judeu dos tempos de Cristo. Pasolini escolheu seus atores dentre os populares da região onde rodou seu filme e os personagens que eles interpretam são igualmente pessoas do povo. Lembrando a icônica frase de Vittorio De Sica: “todo mundo poderia interpretar um papel perfeitamente: o dele mesmo”.
Os milagres de Cristo aparecem de modo discreto ou até elipsados no filme do italiano. Se outros tantos filmes optam por exibi-los como um espetáculo (não no sentido banal do termo, mas no de consumação da divindade do personagem), a obra pasoliniana recusa o uso de efeitos especiais ou de intrusões grandiloquentes da trilha sonora, que reverberam o sentido de espetacularização dos feitos de Jesus. Pasolini definitivamente não crê nesses momentos como os de maior relevo na história que conta. As ações de Cristo diante da corrupção que encontra em Jerusalém, seus momentos felizes junto ao povo e seus discursos inflamados e marcados até mesmo pela ira dão impulso à obra. O filme destaca lindamente a passagem em que crianças o saúdam durante o episódio dos vendilhões do templo. “Hosana ao filho de Davi!”, gritam elas em coro diante de Jesus, que lhes sorri com igual pureza.
Mas a irônica questão com que abri minha crítica ainda exige resposta: como Pasolini conseguiu tamanha entrega a uma história na qual ele mesmo não acreditava? Seu ateísmo declarado, embora não militante, não o impediu de construir a figura de Cristo da maneira mais fiel e apaixonada que o cinema registra. Pasolini inaugura com O Evangelho Segundo São Mateus uma nova concepção em seu cinema, a qual ele abordaria um ano depois no célebre ensaio O Cinema de Poesia. Para o italiano, só seria possível tratar dos passos de Jesus do nascimento ao calvário se ele conseguisse ver a história pelos olhos de um crente. Assim surge o que o diretor chamou de câmera subjetiva indireta livre. Semelhante ao discurso indireto livre da literatura – procedimento narrativo em que pensamentos de um personagem são expressos pelo narrador –, a nova forma de filmar de Pasolini conseguia inserir o próprio diretor no olhar de seus personagens. Assim nascia a ideia do cinema de poesia.
O cinema clássico usava a câmera objetiva, que apenas registra as ações e as falas dos personagens, e a câmera subjetiva, situada explicitamente do ponto de vista de um deles. Já o cinema de poesia, que Pasolini anuncia como a tendência estilística irrefragável do cinema moderno, aproximou o diretor de seu personagem de forma a expressar sua interioridade mesmo quando ele nada fala. Desse modo, os planos de conjunto ou americanos, tradicionais do cinema clássico, cedem lugar a planos assimétricos, uso intenso da lente zoom, movimentos manuais de câmera, muita liberdade nos travellings e até uso de flares (efeito visual provocado pela incidência direta da luz sobre a lente). Há muito disso em O Evangelho Segundo São Mateus. Basta assistir aos anteriores Accattone e Mamma Roma para notar a mudança de paradigma que o terceiro longa-metragem do italiano representou em sua filmografia.
O final da obra de Pasolini mostra a crucificação de modo diametralmente oposto à sua representação em A Paixão de Cristo, de Mel Gibson. Enquanto o norte-americano aposta na dor e na destruição do corpo durante todo o calvário, o italiano é pouquíssimo violento em seu registro. Não há as sanguinolentas cenas de tortura, extremadas por planos-detalhe e tão abundantes no longa-metragem de Gibson. Em Pasolini, quando Jesus é erguido na cruz, a câmera tremula incessantemente, mas permanece em contra-plongèe, reafirmando a altivez do filho de Deus mesmo em seu momento de maior agonia. O filme termina com os mesmos versículos que encerram o texto original e que introduzi na epígrafe desta crítica.
O Evangelho Segundo São Mateus filma Jesus como nunca se fizera e como jamais se faria novamente, subvertendo a própria gramática do cinema para isso. Nem os milagres, nem o doloroso martírio final. O clássico de Pier Paolo Pasolini vê nos ensinamentos de Cristo a sua grande obra no mundo terreno. A Palavra (e somente ela) é seu verdadeiro elã.