Afeições desordenadas
Adroaldo Palaoro, sj
- Inácio sabe manejar muito bem toda sorte de movimentos psicológicos e espirituais internos. Ele percebe com facilidade e perspicácia o que acontece em seu interior, seus sentimentos e movimentos íntimos, descobre suas causas e efeitos, faz uma “leitura” de si mesmo (a “lição” de Deus).
Os EE. estão cheios de uma psicologia dos afetos. “O afetivo é o efetivo”.
Afetos: atrações, inclinações, força, tendência… que nos move para algo ou alguém, para uma direção…
Afeição: é a inclinação para uma pessoa ou um objeto, motivada pelo amor que se tem à mesma.
Não se trata de algo passageiro, mas de um estado peculiar, constante e duradouro. A afeição é como que o motor de nossa existência; está em contínuo movimento… dando sabor e calor à vida.
Os afetos são a mediação (intermediários) entre o “eu” e o mundo. De acordo com nossa natureza, os afetos tendem a sair, a se projetar, a se orientar (apegar-se) às coisas, pessoas, status, poder…
A formação dos afetos está em relação com a história de cada pessoa: surgiram a partir de experiências feitas de atrações, repugnâncias, gratificações, medos… A partir dessas experiências os afetos tendem a fixar-se: aderências afetivas que procuram gratificações afetivas.
Na dinâmica dos Exercícios o exercitante percebe uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, pessoas… que somada a outras, passam a constituir uma estrutura de “maus afetos” (“afetos desordenados”). Com as “afeições desordenadas” e “aderências”, a pessoa perde sua liberdade afetiva e não pode encontrar a Vontade de Deus sobre si mesma.
- 50: “Movendo mais os afetos com a vontade”
A vontade procura levar os afetos na direção oposta às “aderências afetivas”. Só se pode seguir a Jesus, recuperando a liberdade afetiva, re-orientando os afetos na direção d’Ele e de seu Reino.
O apego às coisas e às pessoas impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
O método dos Exercícios nos propõe uma maneira prática de ir limpando os “canais” de nossa existência para que não se grudem em nós as “aderências” e não se entorpeça o nosso fluir; também nos ajuda a verificar e desvelar os apegos que nos vinculam a pessoas e objetos em nossa passagem pela vida.
Que são “afeições desordenadas”?
Nos Exercícios, a “ordem” na afetividade significa que Deus é de fato o primeiro amor, que antecede a qualquer outro. Daí nasce a “harmonia interior”.
Quando se ama a Deus, todos os elementos de nossa vida, todas as afeições, todas as potências do espírito encontram-se em “seus lugares”, produzindo uma deliciosa experiência de paz.
Há afetos organizados negativamente por acúmulo de “experiências negativas”. Para atingi-los, S. Inácio coloca “cargas afetivas opostas” (pessoa de Jesus, Reino, as petições…). Trata-se de re-orientar os afetos do exercitante. Sabemos que não se pode suprimir (matar) os afetos; o que se pode fazer é mudar a orientação (“ordenar”) dos afetos, ou seja, re-orientar as “aderências afetivas” de certos objetos ou pessoas para algo transcendente. É o que S. Inácio procura nos Exercícios: re-orientar (ordenar) os “afetos desordenados” para o amor a Jesus Cristo e a seu Reino.
Os afetos se “orientam” e se “ordenam” segundo não só o valor do objeto em si, mas também e principalmente pelo valor subjetivo que é dado ao objeto.
Ao “ordenar os afetos” o exercitante cria, em si, um novo referencial, um novo centro afetivo…
“É necessário ter um importante objeto de amor para abandonar os antigos amores”.
Em resumo, trata-se de ordenar o amor, para que amemos com um amor operativo, oblativo…
Na psicologia dos afetos, acontece uma experiência sempre que se dá uma modificação afetiva. E só há modificação afetiva com conteúdo afetivo. Na experiência dos Exercícios, trata-se da relação personalizante alicerçada na pessoa de Jesus Cristo e nos valores do Reino.
Nos Exercícios, S. Inácio fala de Deus, Jesus Cristo, Missão, Reino… em termos vitais, porque para mudar afetivamente é necessário um “objeto” ou “alguém” que possa provocar na pessoa uma repercussão afetiva. Deve ser algo gratificante e plenificante para a afetividade e que venha de fora dos afetos.
Se apresentamos Jesus que nos seduz por sua verdade, sua personalidade, sua ternura, suas atitudes perante as pessoas e instituições, sua liberdade, seu perdão, sua coerência na verdade e no amor…, seremos “afetivamente impactados”. Se Jesus Cristo atinge assim nossa afetividade, provocará um contraste entre Ele e nossos “afetos desordenados”. Começa, então, lentamente, um re-ordenamento dos afetos para Ele e seu Reino; com isso abre-se o caminho para encontrar a Vontade de Deus para a nossa vida.