26 – Inacianidade:
viver nas “fronteiras” da igreja e do mundo
“A utopia do REINO gera a audácia”.
A experiência cristã nos impele continuamente a uma vivência essencialmente “fronteiriça”.
Seguir Jesus é arrancar-se, desinstalar-se, abrir-se a situações novas, correr o riso do provisório…
É situar-se no limite, diante de “Jesus-em-limite: a Cruz.
A fronteira é espaço tenso e conflitivo; ali o Evangelho se faz mais transparente, o seguimento de Jesus se faz mais radical, a vivência cristã deixa de ser neutra e começa a ser conflitante.
Dizer “fronteira” é como dizer novidade; fronteira significa lugares novos, experiências novas, desafios novos. Comporta emoção e descoberta, com sabor do risco, do perigo, da ousadia…
Na história da Igreja muitos homens e mulheres viveram em atitude de permanente êxodo e disponibilidade, numa espécie de itinerância interior e exterior que os converteu em vanguardas da história.
S. Inácio, através dos seus escritos, nos revela a experiência de alguém que viveu uma grande “mobilização interna”: foi impelido a lançar-se, romper fronteiras, assumir novos riscos, renovar-se sem cessar, adaptar-se às condições de tempo e lugar, tenacidade com uma boa dose de paixão…
Porque foi homem “com uma visão que ia além de seu tempo”, S. Inácio nos revela, na sua vida, um caminho original, alternativo, criativo, diferente, contrastante com o da maioria; não é uma “via” como as outras.
Se não é a-normal, é certamente não-normal; sua vida é marcada por certa “estraneidade”, não só face ao mundo mas também no seio da Igreja, porque sua existência está situada no umbral, no limite…
O umbral é a matriz das experiências religiosas, dos sonhos, dos projetos originais, das intuições poéticas ou artísticas, da imaginação criadora, dos ideais vitais…
O umbral é um lugar de relação, de questionamentos, de novidade; é provocador, incitador, desperta a curiosidade…; ele atua no nível das raízes mais profundas do nosso ser.
Nem todas as pessoas vivem nesse “umbral” ou na “fronteira”. A maioria é habitante do mundo, da região habitada, segura, sem riscos… Aquele que é capaz de suportar e sustentar a abertura do limite e travar diálogo com ele, esse é o “habitante da fronteira”. S. Inácio foi capaz de se aproximar desse limite, tanto interior quanto exterior; por isso encarnou ideais vitais da sociedade de seu tempo. Ele rompeu as fronteiras geográficas, culturais, religiosas, sociais… Tinha o coração maior que o mundo.
Por ser “homem de fronteira”, Inácio evitou uma dupla tentação: seja de romper totalmente com a instituição (como Lutero), seja de deixar-se manipular por ela.
Ele esteve com um pé no sistema para poder dizer-lhe algo (protesto) e um pé fora para poder anunciar o que lhe transcendia e lhe dava, ao mesmo tempo, o sentido supremo (proposta-utopia).
Ele foi capaz de “contemplar o outro lado”, de vislumbrar algo novo, inédito… Deslocou-se do centro para a margem, do “normal” para o “não-normal”, da segurança do mundo para a insegurança evangélica, da retaguarda para as novas encruzilhadas da história…
Houve muito de aventura, de risco, de imaginação criadora… sem modelos prévios, sob o impulso do Espírito. “Deus o conduzia pela mão como um mestre conduz seu discípulo” (Aut.).
O peregrino inaciano é alguém que “entra” numa terra estranha, que se afasta dos apoios comuns da existência; é alguém livre, que não se acomoda num determinado lugar, que está sempre na expectativa da novidade… pronto a arriscar-se nas múltiplas e mutáveis situações humanas de fronteira.
Para ele, a origem de sua experiência está nessa inquietude de “sair” e ir aos “extremos”, aos “aforas”…
Na fronteira de si mesmo encontra o espaço sagrado onde Deus se manifesta; ali encontra-se com o melhor de si mesmo, com as energias adormecidas, com os sonhos escondidos e projetos ocultos…
Na fronteira do mundo encontra seu lugar de missão: ali o espera os desesperados, os excluídos…
“Partir para a fronteira” é, portanto, “entrar” no mistério de si mesmo, no mistério da grande fraternidade, no mistério do sentimento cósmico.
“Partir para a fronteira” é “entrar” no nosso coração, morada dos nossos sonhos, experiências, desejos, lembranças… morada do amor, lugar de encontro e escuta, espaço de silêncio. Enfim, a fronteira converte-se, para quem tem um olhar sacramental, num grande Templo, onde Deus revela a sua identidade e onde descobrimos nossa verdadeira identidade e missão; estabelecemos nossa moradia no mundo, inseridos nos “extremos” do trabalho, da luta, da vida, dos direitos, do humano… ali onde se faz mais necessária a atividade profética, para sacudir a inércia na qual vai se petrificando a Igreja e a sociedade.
Textos bíblicos: Ex 3,1-6; Lc 5,1-11; Mc 5,1-21; Gen 12,1-20; Mt 4,17-25; Mc 7,24-30.
Na oração: Há em nós “extremidades da terra” ainda inexploradas, regiões desconhecidas, onde todas as criações e intuições são possíveis, se consentirmos entregar-nos a esse mundo misterioso.