Sabedoria: “sentir e saborear as coisas internamente
(EE. 2)
“Gostaria de pintar o retrato do meu coração”
(Ticiano)
Pouco antes de morrer, Roland Barthes pronunciou a sua conferência inaugural como professor do College de France. Sabia que estava ficando velho, mas saudava a velhice como tempo de recomeço, o início de uma vida nova. E ao terminar sua fala fez uma confissão pessoal espantosa. Disse que havia chegado o momento de entregar-se ao esquecimento de tudo o que aprendera. Tempo de desaprender.
Através dos anos sua mente foi coberta por saberes que se sedimentaram. Agora ele estava enterrado, esquecido de si mesmo. Só havia um caminho: desaprender tudo.
“Empreendo, pois, – diz ele – deixar-me levar pela força de toda força viva: o esquecimento”.
Esquecer é raspar a tinta, tirar as máscaras, a fim de se lembrar do esquecido. E o que ele viu, depois de terminada a raspagem, o encantou: lá estava sua “alma”, sua identidade sagrada, sua fonte primeira, seu jeito original de saber: a sabedoria.
As cobras, para continuarem a viver, têm de abandonar a casca velha. Também ele tinha de abandonar os saberes com que a tradição o envolvera. Somente assim a Vida poderia brotar de novo, fresca, do seu corpo, como a água brota das profundezas onde estivera enterrada.
E disse então que este era o sentido de ficar sábio: Nada de poder; um pouquinho de saber; e o máximo possível de sabor…
Isto é o que ele pretendia ser, daquele momento para frente: um mestre do prazer, aquele que se dedica a ensinar aos seus jovens alunos o “gosto bom das coisas”.
“Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos. Desencaixotar minhas emoções verdadeiras. Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, mas um animal humano que a natureza produziu. Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!), exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender…” (Alberto Caeiro)
Nós, qual casas, vão-nos pintando pela vida afora até que a memória não mais existe do nosso ser.
O rosto? Perdido. Máscara de palavras.
Quem somos? Não sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaprender.
Nas suas origens, sabor e saber são a mesma coisa. O verbo latino sapere significa, ao mesmo tempo, tanto saber quanto ter sabor.
Saber é experimentar o gosto das coisas. Saber é sentir o Sabor.
Sapiência quer dizer conhecimento que tem sabor. A sabedoria, com frequência, mora do outro lado da inteligência. Para se construir uma bomba atômica é preciso ser muito inteligente. Para se tomar a decisão de desmontar todas elas é necessário ser sábio.
O sábio é aquele que conhece não com a razão mas sente o gosto daquilo que já está dentro dele.
Os saberes podem ser somados (como as camadas de tinta), mas a sabedoria só se obtém por subtração, pela raspagem e lixações.
Sabedoria é sinônimo de observação, experiência, curiosidade, reflexão, serenidade e bom senso.
A sabedoria é patrimônio na humanidade. Nasce em cada coração humano.
A sabedoria é a própria lei da vida. É a lei que comanda todo o agir humano, e também o agir do universo. Ela é o sentido da vida. Ele indica a razão do trabalhar e do viver.
Ela penetra toda a atividade humana.
A sabedoria não se estuda. Somente se escuta.
Sábia é a pessoa que coloca atentamente seus ouvidos aos desejos do coração.
É necessário conviver com sábios. As pessoas sábias são uma bênção.
Nossa sociedade está repleta de cientistas e técnicos, está cheia de profissionais e vazia de sábios.
Poucos sabem das coisas da vida. A pessoa sábia tem uma direção na vida. Sabe porque vive.
Sabe dirigir seus passos. Tem segurança e serenidade. A Bíblia nos fala da grandeza da sabedoria: “‘Ela é um tesouro…”’
Conhecer e andar nos caminhos da sabedoria é o novo jeito de viver.
O ser humano tem um coração capaz de deixar ressoar o mistério de Deus como o caracol deixa ressoar o som do mar.
O ser humano é, em sua entranha mais profunda, um ser vocativo: está habitado por desejo irreprimível de autotranscendência e autorealização.
Por isso, em seu coração se dá o cruzamento de múltiplos chamados: a felicidade, o bem, os valores, o desconhecido, a aventura; apaixona-lhe a busca da luz, o encontro com o melhor de si mesmo.
Quando escutamos o nosso coração com muita atenção encontramos uma caixa sensível de ressonância. Ressoa o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da relação, da plenitude, impulsiona nossas vidas para fora e para frente. Quando “olhamos” o coração com olhos de amor percebemos sua bondade, seus sonhos, suas nostalgias; talvez suas feridas e decepções. Descobrimos um mundo excitante de aspirações à unidade, à feliz plenitude.
O coração humano está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos. Busca ardentemente a pacificação, a unificação interior e cósmica. É capaz de passar da nostalgia à profecia, do medo à esperança, do cálculo mesquinho ao risco esperançoso de caminhar para o novo.
Sabedoria rica e nova: o nosso coração é “sábio” quando sabe “saborear a verdade”, quando é livre, quando intui a direção da própria existência, quando se sente “seduzido” pelo que é verdadeiro, bom e belo.
Cada pessoa leva dentro de si a “pegada” de Deus. A imagem de Deus atua sob a forma do desejo insatisfeito. Deus é o Amor impossível do homem. Sua presença é uma ausência ardente.
A vida e as qualidades de cada pessoa constituem um mostruário dos dons do Espírito derramados e ativos em seu dinamismo existencial.
Deus libera em nós as melhores possibilidades, a melhor música; ilumina os olhos do nosso coração para que possamos ver-nos com Sua Luz amorosa e descobrir em nós nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, irrepetíveis, responsáveis (capazes de resposta).
Deus vem ao nosso encontro no ponto decisivo onde vai se modelando a nossa vida. A Palavra de Deus atinge-nos nos valores que consideramos vitais.
“Que procurais?”
É a pergunta que Jesus dirige aos dois discípulos de João Batista (Jo l,38). Ele procura as aspirações profundas da pessoa, aquilo a que aspira de forma definitiva, isto é, a qualidade dos desejos profundos.
Ele quando se depara com pessoas que já não procuram nem desejam nada, “inquieta-as”, “provoca-as”… e põe-nas à procura. É assim que Ele sonda o coração da Samaritana, para descobrir nela o desejo de Deus e lhe propor a Água Viva. Evangelizando-nos, Jesus coloca a sua Palavra “no” nosso coração. É muito além de nossa razão, da experiência da nossa vida moral; é no coração, fonte de toda a nossa vida.
Na oração, devemos deixar elevar-se até à consciência os desejos que estão no mais profundo do coração, escutar as “vozes profundas”… A oração é o tempo propício para detectar as aspirações, colocá-las a nú sob o olhar de Jesus Cristo. São aspirações existenciais, sem as quais não tem sentido viver:
– desejo de viver feliz e fugir do drama angustiante da morte;
– querer descobrir o sentido da própria existência (“de onde venho? para onde vou?”);
– querer amar e ser amado (somos feitos para o encontro, a partilha, a alegria, a comunhão…);
– desejo da liberdade;
– sede de Deus (somos feitos para Deus e só encontraremos a felicidade repousando n’Ele).
Jesus Cristo é Aquele que satisfaz todas as nossas aspirações humanas, excedendo-as infinitamente.
Texto bíblico: Jo 1,47-51
Na Oração:
– abra as comportas do coração e permita que a Água viva lhe inunde até o mais profundo do seu ser;
– normalmente, a oração se apresenta como um amanhecer, com neblinas, nuvens e pequenos raios de luz que, mais que iluminar, parece dizer-nos: “Confie que Eu existo!”.
– na origem de toda oração há a tomada de consciência do olhar de Amor de Deus que nos cria sem cessar;
– não podemos reduzir a presença de Deus a um estar ali, num frente a frente de curiosidade, de justaposição, de dependência ou de necessidade; é comunhão, um sair de si para o outro. A oração é, em primeiro lugar, uma experiência de ser e de presença.