19 – Mística inaciana: “Deus em todas as coisas”
As consolações místicas da última etapa em Manresa, e sobretudo a ilustração do Cardoner, realizam em Inácio uma verdadeira “transformação interna”, uma “completa regeneração interior”. Disso resulta:
– “Lhe parecia como se fosse outro homem” (Aut. 30); “Todas as coisas lhe pareciam novas” (Aut. 30);
– “Começou a ver com outros olhos todas as coisas” (Lainez);
– “Manifestaram-se-lhe os princípios de todas as coisas”, “como se houvesse visto as razões ou causas de todas as coisas” (Nadal).
Inácio, em sua solidão em Manresa experimenta a contemplação de Deus. E este “ver a Deus” traz a grande novidade em sua vida: Inácio se transforma num “homem novo”. A partir da altura de sua elevação mística, o mundo, as criaturas, tomam outro aspecto ao oferecer uma nova perspectiva.
Inácio, “transcendendo-se a si mesmo”, alcança a contemplação de Deus na criação do mundo.
“Uma vez se lhe representou no entendimento, com grande alegria espiritual, o modo com que Deus havia criado o mundo. Parecia-lhe ver uma coisa branca da qual saíam alguns raios e dela fazia Deus luz” (Aut. 29); imagem que mais tarde recolherá em seus Exercícios ao propor esta consideração: “Olhar como todos os bens e dons descem do alto… assim como do sol descem os raios…” (EE. 237).
Inácio, com a “força sintética e organizadora” que adquire em sua vida mística de Manresa, não só se transformou a si mesmo, como também, diante dele, vê transformadas todas as coisas, todo o mundo…
Uma nova luz banha agora todas as criaturas.
Inácio, uma vez encontrado Deus, vê o mundo com olhos diferentes. As “coisas” adquirem uma tal “transparência” que lhe permite ver a Deus através do mundo que o rodeia.
A “transcendentia mundi” conduz à “transparentia mundi”.
“Tudo o que não é Deus, é captado em sua mais íntima essência como transparente que nos deixa ver a Deus. Deus que se esconde em suas criaturas, pode ser encontrado só no descobrimento de suas criaturas… Somente aquele que encontrou a Deus “acima”, o encontra também “abaixo” (Hugo Rahner).
A “alma” que contemplou a Deus sente dilatada sua capacidade, e aprende a encontrar o mesmo Deus que está “no mais íntimo de cada coisa”; sabe “encontrar a Deus em todas as coisas”.
Ao conhecer melhor a Deus, Inácio penetrou mais no conhecimento do mundo.
A oposição Deus-mundo, Criador-criatura, fica superada no momento em que se chega a Deus: a transcendência de Deus o leva à aceitação do mundo.
O “ver a Deus em todas as coisas” conduz à explicação última do mundo…
O mundo não nos dá o sentido último de Deus, mas Deus, sim, nos dá o sentido do mundo, que Ele livremente criou; o “contato” pessoal com Deus nos abre o sentido do mundo concreto, tal como Deus o quis.
Deus é maior que o mundo; o mundo não esgota os aspectos de Deus; mas Deus, o Infinito, o Todo-poderoso, sim, é a última explicação de todas as coisas.
As criaturas foram feitas por Ele; d’Ele saem, a Ele voltam; a Deus levam, e a Deus as devemos levar…
Portanto, a partir de Manresa Inácio começa a encontrar no mundo, nas coisas e nas pessoas, nas outras criaturas, em “todo lo demás”, o que antes só acreditava poder encontrar no mesmo Criador.
Deus está em todas as coisas!
Este é o progresso que Inácio irá realizando em sua vida interior: “Sempre crescendo em devoção, isto é, em facilidade de encontrar a Deus e agora mais que em toda sua vida. Sempre, a qualquer hora que queria encontrar a Deus, O encontrava” (Aut. 99).
Por isso, para Inácio, sua oração será eminentemente dinâmica e orientada à prática; sua mística não é a de um quietismo inativo, mas a “mística de serviço” que o impulsiona a ser contemplativo na ação.
A espiritualidade inaciana pode proporcionar, a homens e mulheres imersos nesta sociedade atual e neste contexto cultural, uma experiência do Absoluto de Deus. Tal experiência não exige como condição necessária ou como caminho de encontro com a Transcendência, o abandonar ou retirar-se do mundo.
Mestre Inácio nos ensina a “encontrar, a experimentar Deus em todas as coisas… a Ele em todas amando e a todas n’Ele” – sua frase preferida. Segundo esta espiritualidade, Deus emerge na densidade das coisas, das pessoas e dos acontecimentos.
É no mundo e na história que Ele deseja ser ouvido, acolhido, servido e amado. A vivência desta espiritualidade impede fugir do mundo para encontrar e experimentar Deus, como igualmente proíbe passar superficialmente pelo mundo sem descobrir e experimentar nele a presença amorosa do Criador e Senhor. Devemos, pois, ser contemplativos na ação.