“No princípio era o olhar…”
“O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando olhando para trás… E o que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes eu tinha visto, e eu sei dar por isso muito bem… Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo…” (Fernando Pessoa)
Nossa cultura contemporânea nos modela para a especialização e o especialista fechado é aquele que perdeu o olhar aberto, simples e natural, o olhar assombrado diante de cada aspecto da realidade.
É alguém com a nuca rígida, o pescoço duro que perdeu os movimentos e a flexibilidade de olhar para os lados, para cima, para baixo e para trás.
É alguém com uma viseira que restringe a amplitude do olhar. Neste olhar estreito e minimizado, o inusitado nos escapa. Perdemos o deslumbramento, o espanto essencial. Padecemos no túmulo do conhecido e rotineiro; já não renascemos para a “eterna novidade do mundo”.
No caminho viciado e repetitivo, a acomodação assassina o movimento do olhar ousado; a criança divina que nos habita perde seu “pasmo essencial”.
Ter um olhar contemplativo significa “olhar” para a realidade através de todos os seus lados, ângulos e recantos. Os olhos estão ligados do coração – olhos abertos, olhos claros e luminosos, olhos compassivos e acolhedores. Um olhar profundamente sensibilizado possibilita o encontro de pessoa a pessoa, de coração a coração. Só o coração que abre o depósito de seus sentimentos disporá de um belo trampolim para contemplar o “mistério” escondido na realidade. “Quando o coração está cheio, os olhos transbordam”.
“Existem duas maneiras de prestar atenção: com os olhos do corpo, ver as coisas visíveis; e, com a força do espírito, contemplar as invisíveis” (S. Basílio)
Assim, a atenção leva ao reconhecimento de uma Presença, e este conduz à adoração.
O olhar atento vê Deus no ser humano e vê o ser humano em Deus. O olhar desatento deixa de apreender essa relação; fecha-se na oposição entre visível e invisível e permanece estranho às presenças.
O olhar atento transforma cada coisa “dada” em um “dom”.
É dessa atenção que será extraído o “louvor, a reverência e o serviço”. Aliás, a atenção constitui o momento único em que a inteligência, o coração e os sentidos podem estar juntos.
Para Nietzsche a primeira tarefa da educação é ensinar a olhar. É a primeira tarefa porque é através dos olhos que as crianças pela primeira vez tomam contato com a beleza e o fascínio do mundo.
Os olhos das crianças não veem “a fim de”; seu olhar não tem nenhum objetivo prático: é pura gratuidade e prazer. Elas veem porque é divertido ver.
“Isso deveria ser a coisa mais alta para minha mente: olhar para a vida sem desejo e não, como um cão, com a minha língua pendurada.
Ser feliz em olhar, com uma vontade que morreu e sem o agarrar e o desejo do egoísmo, o corpo inteiro frio e reduzido a cinzas, mas com olhos bêbados iguais aos da lua. É disso que eu mais gostaria – assim o seduzido se seduz a si mesmo –, amar a terra da mesma forma como a lua a ama, tocar sua beleza só com os meus olhos.
E isso é que a percepção imaculada de todas as coisas significará para mim: que eu nada desejo delas, exceto a permissão de ficar prostrado diante delas como um espelho com cem olhos”. (Nietzsche – Assim falou Zaratustra)
Textos bíblicos: Lc 9,7-9
Na oração: “Olha-me, Jesus de Nazaré.
Que eu sinta pousar sobre mim Teu olhar livre, sem a escravidão da lei que obriga, sem exigências que me ignorem, sem a distância que congela, sem a cobiça que me compra.
Que teu olhar caia nos meus sentidos, e penetre até o inacessível, onde espera por Ti meu eu desconhecido, semeado pela Trindade desde o início.
Germine meu fruto, rompendo em silêncio com o verde de suas folhas, a terra re-movida, re-mexida e preparada, que me cobre e me alimenta.
Deixa-me entrar dentro de Ti para me olhar a partir dos Teus olhos, e sentir que se apagam em mim tantos olhares interesseiros e alienados que me deformam e me corrompem, extraviando-me do Caminho que és Tu! (Benjamim G. Buelta)